LUDUS
Tolle, lege.
Santo Agostinho
Toma a palavra, e principia. Tudo
tem um pouco de ti: um sol, um sema.
No fundo, teu desejo:
............................. lodo e ludo,
jogo de truque e blefe de poema.
Toma este livro, toma e lê (ou lege);
não só um tomo, a obra inteira soma
à solidão maior que te protege
como um corpo de baile no idioma.
E toma ao pé da letra o que combina
com teu gosto e prazer:
............................. o cimo, a suma
de todos os sabores,
............................. vitamina,
quintessência final de coisa alguma.
Gilberto Mendonça Teles
In 'Plural de Nuvens’(1990)
AQUI E AGORA
Procuro o aqui e o agora,
o agoraqui, o que já foi
e continua: a cor de outrora
no couro curtido de um boi.
Procuro o que está sendo,
o que se acende, o que se apaga,
o acontecido acontecendo,
sombra de peixe fora d'água.
Procuro o que figura
no que perdi te procurando,
o que se gastou na usura
do que me vem de vez em quando.
Procuro o que projeto
além de mim, no que me sobra:
talvez a sombra de um inseto
na plantação da minha obra.
Procuro o procurar-te,
o que sempre fiz e não sei.
Talvez o aqui e o agora, a parte
do que ficou fora da lei.
Gilberto Mendonça Teles
In ‘Plural de Nuvens’(1990)
PLURAL DE NUVENS
Se há um plural de nuvens e se há sombras
projetadas no texto das cavernas,
por que não mergulhar, tentar nas ondas
a refração dos peixes e das pedras?
Há sempre alguma névoa, um lado obscuro
que atravessa o poema. Há sempre um saldo
de formas laterais, um como escudo
que não resiste muito a teu assalto.
Se alguma luz na contraluz se esbate,
se há no curso dos dias sol e vento,
talvez na foz do rio outra cidade
venha no teu olhar amanhecendo.
Importa é caminhar, colher florzinhas,
somar os ( im ) possíveis e parcelas,
criar no tempo algumas coisas findas,
algumas ilusões e primaveras.
Importa é ler de perto a cavidade
das nuvens e espiar os seus não-ditos:
o mais são armas para o teu combate,
falsos alarmes para os teus sentidos.
Gilberto Mendonça Teles
In Plural das Nuvens
SIGNO
Ainda existe a rosa nos cabelos
vermelhos da poesia.
Ainda há força
no azul do seu mistério, no seu canto,
no eixo de sua aérea encruzilhada.
Ainda, a sua origem, seu mais íntimo
silêncio: o veludoso ardor das pétalas,
o aroma das amoras no políndromo,
das palavras de aladas peripécias.
Ainda, esta morada, o seu precioso
espaço interior, o alumbramento
da forma em desatino, a descontínua
perspectiva do ser na travessia.
Ainda, a sua angústia, o novo tempo
se exaurindo nas coisas, lapidando
os favos da romã e consumindo
seu avesso de fogo e sutilezas.
E ainda a sua imagem:
lago, espelho,
alma e corpo submerso, o indelével
estribilho do amor e seu disfarce,
e seus pontos de cruz na superfície.
Gilberto Mendonça Teles
In Plural de Nuvens
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