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sexta-feira, 6 de setembro de 2013
DO LIVRO & CONE DE SOMBRAS
TEORIA
1
Minha paixão teórica
é muito mais que paixão;
não está longe nem próxima,
está no ar e no chão.
Tem seu real, mas é órfica
como o sim, como o não;
sua antena parabólica
capta só distração.
Nunca exibe o seu código
livre na palma da mão,
embora sempre erótica
no seu tempo e viração.
Minha paixão teórica
segue o exemplo da inflação:
sobe e desce sem órbita,
é mais que bala – é balão.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
2
Deixe que venha o poema
como um telefonema.
Deixe que o poema venha,
mas ponha fogo e lenha.
Que o poema venha, deixe,
mas com molho no peixe.
De lenha e telefonema,
de peixe e algum dendê,
pode-se ter um poema,
dependendo de você,
que é capaz de ver anjo
voando de mini-saia,
sem se dar conta do arranjo
ou do rabo-de-arraia.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
3
Eu não sei se sou leigo ou laico,
sei que este poema é prosaico.
E sei que em matéria de poema
melhor é não criar problema.
Cada um escreve o que pode:
este aqui tem barba e bigode
e pode até não ter cabelo,
mas não é preciso dizê-lo.
O leitor, que hoje está na moda,
é que deve fazer a poda
e colher o que mais lhe agrade,
mesmo que seja tempestade.
Mas se eu não for laico, for leigo?
E se o meu poema for meigo?
Como é que fica o meu conceito,
se ainda não matei o sujeito?
E acho mesmo que além de tudo
um poema, mesmo sisudo,
pode até ser (tecer faz mal?)
um poema sentimental.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
ENTREMÊS
Poe trás da sombra, a cortina:
por trás, seu palco de susto:
ensaia-se uma obra prima
nas cenas das contraluz.
Pula no centro um fonema,
faz piruletras e ponto.
(No camarim uma pena
procura imitar o tom.)
Cada vogal com seu luxo
de cores e metaplasmos
se enrola num caramujo
para os disfarces nasais.
A seguir as consoantes,
marcando o ritmo de um órgão
se curvam fazendo grandes
acrobacias no chão.
No bastidor as palavras
treinam seus malabarismos:
pernas pretas pernas alvas
jogo de amor nos quadris.
E logo, formando fila,
saltam rindo para o palco,
dançando rock, quadrilha,
puxando seu carnaval,
formando grupos, figuras,
coreografias de gestos,
mil movimentos de agulhas
e de novelos nos pés.
E fazem tudo tão simples,
com a tal perícia e tal arte
que só se escutam os timbres
de seu prazer de cantar.
Depois, em forma de reza,
entre palmas e mãos postas,
alguém prega alguma peça
na ponta deste retrós.
Nas cenas da contraluz,
ensaia-se uma obra-prima;
por trás das sombras, o susto;
por trás do susto, a cortina.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
CANÇÃO
Aquém da fala
a voz resvala
na escuridão:
quer ser figura,
torna-se pura,
ser a canção,
o vento, a praia,
nuvem, cambraia
no céu, no chão,
Mas o que excita
a forma escrita
na minha mão,
o que foi lido
ou pressentido
no sim, no não,
ainda resvala
além da fala
na escuridão.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
CRÍTICA
seu livro tem altos & baixos
os altos ideais & os baixos princípios
as altas qualidades & os baixos instintos
a alta fidelidade & o baixo meretrício
a alta freqüência & o baixo contínuo
o alto da cópula & o baixo da cúpula
o alto cargo & o baixo calão
o alto da boa vista & o baixo leblon
o ponto mais alto & o mais baixo relevo
o alto falante & o baixo falido
o que anda alto & o que pisa baixo
o alto poder de & o baixo costume de
seu livro tem altos & baixos
embora o tenha lido muito por alto
& em baixo astral
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
A Pedra
No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?
Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?
No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.
No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala,
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.
No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
VEIA POÉTICA
às três horas da manhã
de uma quarta-feira de cinzas
o poeta olhou mais uma vez
a árvore dourada da existência
fechou o livro de teoria
abriu as veias
e começou a escrever em silêncio
o seu poema definitivo
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
DOCUMENTO
Pego um selo qualquer, uma estampilha
dessas de educação de antigamente,
e dou ao texto um cunho de vigília,
de estado de leitura permanente.
Mas falta-lhe um relógio de ambiente,
falta um jogo de escrita ou de mobília;
e o que se conta nunca está de frente,
tem sempre um jeito oblíquo, de armadilha.
Fosse um papel sem lado, e o meu papel
talvez se sustentasse no apelido,
nalgum nome que se abre como um delta,
como uma linha-d’água, um claro-escuro,
um sinal para ser reconhecido
sem timbre e protocolo, no futuro.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
PASSATEMPO
Como num jogo, sem barulho,
escolhemos a parceria,
tomamos nossos lugares
e nos dispusemos à sorte das cartas.
Houve tímidas apostas.
Compramos, descartamos,
discutimos as regras,
mas tudo pelo simples
prazer do passatempo.
Se houve boas jogadas
e algum blefes
(trapaças, talvez),
ainda é cedo para saber.
O certo é que fizemos
21 pontos nesta rodada.
A mesa ainda está disposta
e o jogo continua.
Quem está ganhando/perdendo?
E o baralho agora de quem é?
PS
E este punhal de prata enfincando de longe
bem no centro da mesa?
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
INVEROSSÍMIL
Mais justo é resistir às conveniências
dos sábados, fechar as mãos no fundo
dos bolsos, pôr os olhos o mais baixo
possível,
rastejar,
lamber o chão
e reduzir as margens do real
à lógica do absurdo.
Há sempre alguém envernizando a linha
dura de teu discurso. Há sempre alguém
tentando surpreender a forma aérea
de teu gesto no instante em que modulas
por dentro o teu vazio.
Melhor é resistir: além dos sábados
a vida continua, e seus disfarces.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
SUBVERSÃO
Nos compêndios de história
desfilam apenas os blocos
de reis, imperadores e generais
que não acabam nunca mais.
Foram sempre justos, belos e bons
e além de tudo geniais:
escreveram seus livros de linhagem
e as nobiliarquias tradicionais.
Para garantir seus direitos divinos
(e seus interesses patrimoniais),
criaram as leis, os documentos e até os cargos
de historiadores oficiais.
Nos compêndios de história
não há povo, falta o carnaval das gerais.
Somente existe a multidão
de reis, imperadores e generais.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
SÁFICA
A Junito Brandão
Sou aquele que te escutou e te viu,
para ciúmes de Safo cuja voz
tinha a forma triste de uma alma talvez
trêmula demais.
Sou igual aos deuses, maior até: sou
quem te lê nas dobras da língua, no som
deste carme feito para Lésbia, ao sol
deste amor tão só.
Sou também aquele que pôs nos braços
de Lídia o mais vívido amor, aquele
que esqueceu a túnica belicosa
no auge da paixão.
E sou agora o signo desse cisne
cuja plumagem lírica sustenta
a vastidão do tempo.
Queira Apolo
dourar meu canto para além de mim.
Gilberto Mendonça Teles
C’ANTIGA
Na corte d’amor eu sofro, coitado.
Pecador eu fui por não ter fisgado
a maior paixão.
Por não ter cruzado a linha d’ambíguo
na corte d’amor não fiquei contíguo
à maior paixão.
Na corte d’amor, no meu coito achado,
trovador eu fui mas sem ter provado
a maior paixão.
Por não ter cruzado a linha d’embigo,
na corte d’amor não sofri contigo
a maior paixão.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
TRAGÉDIA DA PIEDADE
namorou-lhe a mulher
assassinou-o
matou-lhe o filho
contraiu núpcias
com a viúva
e com os direitos
autorais
e alguns galões
abandonou a mulher
e se perdeu nos sertões.
Gilberto Mendonça Teles
HOMOLOGIA
Depois que Cabral atravessou
a montanha de mares nunca dantes
e foi, próspero, educando
as pedras e equinócios dos Andes,
os sete mil e quinhentos quilômetros de
foram logo substituídos
pelo sete mil e quinhentos quilômetros
de montanhas, índios e vulcões.
Depois que Cabral descobriu
o maritimontanhoso das palavras mais
e foi, prospero, reeducando
o verso decassílabo das pedras,
os cinqüenta milhões de poetas do
foram logo substituídos
por outros cinqüenta milhões
de montanhas, índios e vulcões.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
CENTÃO SIMBOLISTA
cítaras, harpas, bandolins, violinos,
mórbidos, quentes, finos, penetrantes,
carinhos, beijos, lágrimas, desvelos,
desejos, vibrações, ânsias, alentos.
mares, estrelas, tardes, natureza,
inefáveis, edênicos, aéreos,
sinistras, cabalísticas, noturnas,
esferas, gerações sonhando, passam!
sombra, segredo, lágrima, harmonia,
pálida, bela, escultural, clorótica,
atra, sinistra, gélida, tremenda,
alvo, sereno, límpido, direito,
amplo, inflamado, mágico, fecundo,
ondula, ondeia, curioso e belo.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
Modernismo
No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.
Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.
Um sujeito que nesta reta de chegada dos cinqüenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.
Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.
Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século
e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.
Gilberto Mendonça Teles
(&cone de sombras, 1986,p.153.)
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sexta-feira, 6 de setembro de 2013
DO LIVRO & CONE DE SOMBRAS
TEORIA
1
Minha paixão teórica
é muito mais que paixão;
não está longe nem próxima,
está no ar e no chão.
Tem seu real, mas é órfica
como o sim, como o não;
sua antena parabólica
capta só distração.
Nunca exibe o seu código
livre na palma da mão,
embora sempre erótica
no seu tempo e viração.
Minha paixão teórica
segue o exemplo da inflação:
sobe e desce sem órbita,
é mais que bala – é balão.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
2
Deixe que venha o poema
como um telefonema.
Deixe que o poema venha,
mas ponha fogo e lenha.
Que o poema venha, deixe,
mas com molho no peixe.
De lenha e telefonema,
de peixe e algum dendê,
pode-se ter um poema,
dependendo de você,
que é capaz de ver anjo
voando de mini-saia,
sem se dar conta do arranjo
ou do rabo-de-arraia.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
3
Eu não sei se sou leigo ou laico,
sei que este poema é prosaico.
E sei que em matéria de poema
melhor é não criar problema.
Cada um escreve o que pode:
este aqui tem barba e bigode
e pode até não ter cabelo,
mas não é preciso dizê-lo.
O leitor, que hoje está na moda,
é que deve fazer a poda
e colher o que mais lhe agrade,
mesmo que seja tempestade.
Mas se eu não for laico, for leigo?
E se o meu poema for meigo?
Como é que fica o meu conceito,
se ainda não matei o sujeito?
E acho mesmo que além de tudo
um poema, mesmo sisudo,
pode até ser (tecer faz mal?)
um poema sentimental.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
ENTREMÊS
Poe trás da sombra, a cortina:
por trás, seu palco de susto:
ensaia-se uma obra prima
nas cenas das contraluz.
Pula no centro um fonema,
faz piruletras e ponto.
(No camarim uma pena
procura imitar o tom.)
Cada vogal com seu luxo
de cores e metaplasmos
se enrola num caramujo
para os disfarces nasais.
A seguir as consoantes,
marcando o ritmo de um órgão
se curvam fazendo grandes
acrobacias no chão.
No bastidor as palavras
treinam seus malabarismos:
pernas pretas pernas alvas
jogo de amor nos quadris.
E logo, formando fila,
saltam rindo para o palco,
dançando rock, quadrilha,
puxando seu carnaval,
formando grupos, figuras,
coreografias de gestos,
mil movimentos de agulhas
e de novelos nos pés.
E fazem tudo tão simples,
com a tal perícia e tal arte
que só se escutam os timbres
de seu prazer de cantar.
Depois, em forma de reza,
entre palmas e mãos postas,
alguém prega alguma peça
na ponta deste retrós.
Nas cenas da contraluz,
ensaia-se uma obra-prima;
por trás das sombras, o susto;
por trás do susto, a cortina.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
CANÇÃO
Aquém da fala
a voz resvala
na escuridão:
quer ser figura,
torna-se pura,
ser a canção,
o vento, a praia,
nuvem, cambraia
no céu, no chão,
Mas o que excita
a forma escrita
na minha mão,
o que foi lido
ou pressentido
no sim, no não,
ainda resvala
além da fala
na escuridão.
Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras
CRÍTICA
seu livro tem altos & baixos
os altos ideais & os baixos princípios
as altas qualidades & os baixos instintos
a alta fidelidade & o baixo meretrício
a alta freqüência & o baixo contínuo
o alto da cópula & o baixo da cúpula
o alto cargo & o baixo calão
o alto da boa vista & o baixo leblon
o ponto mais alto & o mais baixo relevo
o alto falante & o baixo falido
o que anda alto & o que pisa baixo
o alto poder de & o baixo costume de
seu livro tem altos & baixos
embora o tenha lido muito por alto
& em baixo astral
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
A Pedra
No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?
Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?
No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.
No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala,
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.
No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
VEIA POÉTICA
às três horas da manhã
de uma quarta-feira de cinzas
o poeta olhou mais uma vez
a árvore dourada da existência
fechou o livro de teoria
abriu as veias
e começou a escrever em silêncio
o seu poema definitivo
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
DOCUMENTO
Pego um selo qualquer, uma estampilha
dessas de educação de antigamente,
e dou ao texto um cunho de vigília,
de estado de leitura permanente.
Mas falta-lhe um relógio de ambiente,
falta um jogo de escrita ou de mobília;
e o que se conta nunca está de frente,
tem sempre um jeito oblíquo, de armadilha.
Fosse um papel sem lado, e o meu papel
talvez se sustentasse no apelido,
nalgum nome que se abre como um delta,
como uma linha-d’água, um claro-escuro,
um sinal para ser reconhecido
sem timbre e protocolo, no futuro.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
PASSATEMPO
Como num jogo, sem barulho,
escolhemos a parceria,
tomamos nossos lugares
e nos dispusemos à sorte das cartas.
Houve tímidas apostas.
Compramos, descartamos,
discutimos as regras,
mas tudo pelo simples
prazer do passatempo.
Se houve boas jogadas
e algum blefes
(trapaças, talvez),
ainda é cedo para saber.
O certo é que fizemos
21 pontos nesta rodada.
A mesa ainda está disposta
e o jogo continua.
Quem está ganhando/perdendo?
E o baralho agora de quem é?
PS
E este punhal de prata enfincando de longe
bem no centro da mesa?
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
INVEROSSÍMIL
Mais justo é resistir às conveniências
dos sábados, fechar as mãos no fundo
dos bolsos, pôr os olhos o mais baixo
possível,
rastejar,
lamber o chão
e reduzir as margens do real
à lógica do absurdo.
Há sempre alguém envernizando a linha
dura de teu discurso. Há sempre alguém
tentando surpreender a forma aérea
de teu gesto no instante em que modulas
por dentro o teu vazio.
Melhor é resistir: além dos sábados
a vida continua, e seus disfarces.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
SUBVERSÃO
Nos compêndios de história
desfilam apenas os blocos
de reis, imperadores e generais
que não acabam nunca mais.
Foram sempre justos, belos e bons
e além de tudo geniais:
escreveram seus livros de linhagem
e as nobiliarquias tradicionais.
Para garantir seus direitos divinos
(e seus interesses patrimoniais),
criaram as leis, os documentos e até os cargos
de historiadores oficiais.
Nos compêndios de história
não há povo, falta o carnaval das gerais.
Somente existe a multidão
de reis, imperadores e generais.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
SÁFICA
A Junito Brandão
Sou aquele que te escutou e te viu,
para ciúmes de Safo cuja voz
tinha a forma triste de uma alma talvez
trêmula demais.
Sou igual aos deuses, maior até: sou
quem te lê nas dobras da língua, no som
deste carme feito para Lésbia, ao sol
deste amor tão só.
Sou também aquele que pôs nos braços
de Lídia o mais vívido amor, aquele
que esqueceu a túnica belicosa
no auge da paixão.
E sou agora o signo desse cisne
cuja plumagem lírica sustenta
a vastidão do tempo.
Queira Apolo
dourar meu canto para além de mim.
Gilberto Mendonça Teles
C’ANTIGA
Na corte d’amor eu sofro, coitado.
Pecador eu fui por não ter fisgado
a maior paixão.
Por não ter cruzado a linha d’ambíguo
na corte d’amor não fiquei contíguo
à maior paixão.
Na corte d’amor, no meu coito achado,
trovador eu fui mas sem ter provado
a maior paixão.
Por não ter cruzado a linha d’embigo,
na corte d’amor não sofri contigo
a maior paixão.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
TRAGÉDIA DA PIEDADE
namorou-lhe a mulher
assassinou-o
matou-lhe o filho
contraiu núpcias
com a viúva
e com os direitos
autorais
e alguns galões
abandonou a mulher
e se perdeu nos sertões.
Gilberto Mendonça Teles
HOMOLOGIA
Depois que Cabral atravessou
a montanha de mares nunca dantes
e foi, próspero, educando
as pedras e equinócios dos Andes,
os sete mil e quinhentos quilômetros de
foram logo substituídos
pelo sete mil e quinhentos quilômetros
de montanhas, índios e vulcões.
Depois que Cabral descobriu
o maritimontanhoso das palavras mais
e foi, prospero, reeducando
o verso decassílabo das pedras,
os cinqüenta milhões de poetas do
foram logo substituídos
por outros cinqüenta milhões
de montanhas, índios e vulcões.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
CENTÃO SIMBOLISTA
cítaras, harpas, bandolins, violinos,
mórbidos, quentes, finos, penetrantes,
carinhos, beijos, lágrimas, desvelos,
desejos, vibrações, ânsias, alentos.
mares, estrelas, tardes, natureza,
inefáveis, edênicos, aéreos,
sinistras, cabalísticas, noturnas,
esferas, gerações sonhando, passam!
sombra, segredo, lágrima, harmonia,
pálida, bela, escultural, clorótica,
atra, sinistra, gélida, tremenda,
alvo, sereno, límpido, direito,
amplo, inflamado, mágico, fecundo,
ondula, ondeia, curioso e belo.
Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras
Modernismo
No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.
Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.
Um sujeito que nesta reta de chegada dos cinqüenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.
Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.
Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século
e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.
Gilberto Mendonça Teles
(&cone de sombras, 1986,p.153.)
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