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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Requiescat


Por que me vens, com o mesmo riso,
Por que me vens, com a mesma voz,
Lembrar aquele Paraíso,
Extinto para nós?

Por que levantas esta lousa?
Por que, entre as sombras funerais,
Vens acordar o que repousa,
O que não vive mais?

Ah! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha e que fui teu:
Não lembres mais que nos amamos,
Que o nosso amor morreu!

O amor é uma árvore ampla, e rica
De frutos de ouro, e de embriaguez:
Infelizmente, frutifica
Apenas uma vez...

Sob essas ramas perfumadas,
Teus beijos todos eram meus:
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.

Mas os teus beijos esfriaram.
Lembra-te bem! lembra-te bem!
E as folhas pálidas murcharam,
E o nosso amor também.

Ah! frutos de ouro, que colhemos,
Frutos da cálida estação,
Com que delícia vos mordemos,
Com que sofreguidão!

Lembras-te? os frutos eram doces...
Se ainda os pudéssemos provar!
Se eu fosse teu... se minha fosses,
E eu te pudesse amar...

Em vão, porém, me beijas, louca!
Teu beijo, a palpitar e a arder,
Não achará, na minha boca,
Outro para o acolher.

Não há mais beijos, nem mais pranto!
Lembras-te? quando te perdi
Beijei-te tanto, chorei tanto,
Com tanto amor por ti,

Que os olhos, vês? já tenho enxutos,
E a minha boca se cansou:
A árvore já não tem mais frutos!
Adeus! tudo acabou!

Outras paixões, outras idades!
Sejam os nossos corações
Dois relicários de saudades
E de recordações.

Ah! esqueçamos, esqueçamos!
Durma tranqüilo o nosso amor
Na cova rasa onde o enterramos
Entre os rosais em flor...


Olavo Bilac,
in "Poesias"
(Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1865 — Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1918)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Poema De Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

''Exausto''


(Para Adélia Prado, que completou dia 13/12/2011 , 76 anos)

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Adélia Prado
In "Bagagem" (1993)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

No curso do dia

Agora que me vou é que me deixo
ficar perdidamente nesta estrada:
vou numa roda viva, mas sem eixo,
numa coisa futura, mas passada.


Vou e não vou e assim se vai compondo
o que me está aos poucos dividindo:
não a zoada azul de um marimbondo,
mas a certeza de um amor tão lindo.


Alguma coisa vai ficando, além do
tempo em que me dou e me reparto:
ficou meu coração, ficou batendo,
batendo na penumbra de algum quarto.


Ficou o que mais quero e vai comigo:
molharam nalgum curso os seus cabelos
para compor as novas semifusas
dos meus silêncios, dos meus atropelos.


Mas no curso dos dias que há por dentro
de cada um de nós, na nossa história,
alguém por certo encontrará o centro
de tudo que ficou na trajetória.


E o que ficou, ficou: raiz noturna
enterrada nas ruas, nos quintais;
vento varrendo o pó de alguma furna,
chuvas de pedra, alguns trovões, Goiás.


Gilberto Mendonça Teles
(Sociologia goiana, 1982, p.113)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Névoas

À frente a lua, atrás os sonhos,
qual a distância a percorrer?
Não a suspeitam nossos olhos:
a bruma sobe das estradas
e desorienta homens e bússolas.

Mesmo que voássemos bem alto,
e os céus se abrissem para nós,
nem mesmo assim divisaríamos
os frutos rubros que buscamos
pelos pomares das estrelas.

Como condores, fronte a pino,
cortando os ares meio tontos,
em vez de dar com o rumo certo
cairíamos na terra cega,
ruiríamos no mar opaco.

Este é o castigo que nos deram:
imaginar com vista ousada,
porém achar grossas neblinas
fechando o mundo que buscamos
por tê-lo visto em pensamento.

E assim deixamos para trás
os sonhos, deuses compassivos:
sem os podermos contemplar
olhamos como um branco enigma
- nevoentos, zonzos os caminhos –

somente a lua à nossa frente.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

E as vidas nelas estão


Tempo passa pela catraca
sonoridade dilacerada
equívocos planando
em jovens nuvens carregadas.

Lágrimas contidas mapeando
alegres imagens
vento sul na cela da oração
voa no globo mortal.

Uníssono rompido no etéreo mudo,
abotoando as violetas prematuras.

Nenhuma palavra veste a essência do sentimento.

Azul do véu
descortina
lábios de anil.

Espaço acenando ao vago instante
em paginas gaivotas
cores internas florescem
despertando a aurora orvalhada.

Utopia dos gestos incertos
abraçando um adágio forte.
Partitura
notas de saudades.

Presságios e calafrios
vazios e arrepios
interrogação
põe fim flor âmbar do cais.

Crepúsculo
crava os dentes
boca trava os giros,
gozos em déjá vu,
sorriso na moldura
sonho vivo consome a mente.

Foge o desespero
pela lateral da estação universal,
vãos distantes
paisagem descansa
por um olhar fundo marcado
presença ausente intacta natural.

Floresta estuprada chora.

Deságua
clamor suave de magoas
por falta de um toque, expressivo
perfume sol sentido aquece.


Aharon

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Como estão as montanhas


Como estão as montanhas
por detrás do horizonte,
e o litoral do sonho
além da nossa fronte;


como, no oceano denso,
anêmona perfeita
sua estrela desdobra
e o cego abismo aceita;


como, atrás das imagens,
a idéia se desenha,
e o oráculo cintila
na impenetrável brenha;


assim fica encerrrada,
assim, desconhecida,
nossa extrema verdade
na noite irreal da vida.


Cecília Meireles
In: Canções (1956)

Cecília Meireles nascimento 07/11/1901 - morte 09/11/1964

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

BEM-AVENTURANÇA


Graças, por todo pão e mistério
pela palavra soerguida
pela poesia
pela vida sobre a vida.

(Fernando Campanella)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

(Fotografia do poeta mineiro Fernando Campanella)


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Viagem

Quem é alguém que caminha
Toda a manhã com tristeza
Dentro de minhas roupas, perdido
Além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
Como se levassem nos bolsos
Doces geografias, pensamentos
De além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
Vem morrer no longe horizonte
Do meu quarto, onde esse alguém
É vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
Coisas em voz que não ouço.
- Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

FILHO PRÓDIGO


I

Ele me olha
com a expectativa do mundo.
Sonda o que sei,
pensa que eu sei.

II

Ele me acompanha
com os olhos da vida.
Mira o que dei,
julga o que eu sei.

III

Ele me abraça
com os anos da infância.
Acha que sou rei,
acredita que eu voltei.

IV

Ele me beija
com os lábios da inocência.
Escolhe as palavras,
multiplica suas vidas.

V

Ele me descobre
no ocaso da existência.
Confere o que sei:
já sabe que não sou rei.


Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

Foto do poeta e seu filho Leonardo.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

IDEAL

Preciso semear
em todos os horizontes
brancas paisagens de aves
. . . sendeiro luz aos humanos.


Preciso ver germinar
. . . lá, muito lá,
beijos se encontrando,
desertos sussurrando . . .


preciso ver florescer
nessas vastidões submissas
pensamentos em largos vôos. . .


Desejo então,
nessas nesses raras,
absorver perfeições de céus
. . . ódios sorrindo aos perdões
. . . braços recolhendo ausências
. . . silêncios desenhando canções.



Alvina Tzovenos
In: Buscas de Infinitos

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Feliz Ano-Novo Judaico 5772

Um sorriso se faz
olha lá os passos de luz vindo
te abraçar feito azul,
na tua estrada,
tua história,
tua memória,
teu coração.
Bem Vindo
doce abraço
aromas de mel
e maçã.
e o que passou deixa ir
feliz ou não.
Vai nascer um big bang
momento virgem
sair do mar
o sol
a vida
o alimento,
na alma
uma estrela
brilhando
ano novo
chegando.

Aharon

מל

חיוך גורם
נראה במורד המדרגות של אור מגיע
אני מחבק אותך כמו האור,
הדרך שלך,
הסיפור שלך,
הזיכרון שלך,
הלב שלך.
רצוי
מתוקה חיבוק
ארומות של דבש
וגם תפוח.
ומה להרפות עכשיו
מאושר או לא.
ייוולד המפץ הגדול
בתולה רגע
מן הים
השמש
חיים
אוכל,
נשמה
כוכב
מבריק
ראש השנה
הקרובים.

אהרון

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Veleiros de Papel

Há no ar uma sede
ferindo a alma dos pescadores,
roendo barcos
e velas em lance de rede.

O homem pelas sebes
Caminha,
recolhendo estrelas
entre as mãos - no céu.

Nas ribanceiras,
crianças empalmam rios,
plantam neve nas colinas
em brancas tendas de areia.

O cansaço dos inocente
põe pedras nos olhos,
fere de morte os covardes,
desmonta velhas embarcações.

Se nada segues
pouco vale o destino,
a morte cavalga veloz
sempre a caminho.

O homem vive
de pescar o tempo:
ora em veleiros de papel,
ora em veleiros de vento

Onévio Antonio Zabot
Joinville, Santa Catarina
Brasil

Copiado da página de minha amiga Dione.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os ventos


Não há, nos ventos,
a liberdade da morte,
embora sejam implacáveis e
jamais perdoem as folhas secas.

Todos os ventos têm nome
mas não se conhece nenhum
de perto, embora
se agarrem a você
e desorganizem a harmonia.

Os ventos não têm forma
mas sabemos todas as suas aspirações
e os seus amores com o mar e as árvores.

Os ventos não têm a liberdade da morte
diluídos na essência
do que nunca aconteceu.

Ashford Castle, Irlanda, julho 92



Álvaro Pacheco
In Geometria dos Ventos (1992)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Eu, no tempo



Meu espírito caminha irreversivelmente para a irrealidade de tudo.
O universo para, de repente, à espera de minha infância.
Tudo repousa em seu lugar.
O tempo, no relógio.
O silencio, na pedra.
Jogo as máscaras fora e me identifico comigo
que me esperava há séculos.

Emílio Moura
In: Itinerário Poético
Entre o Real e a Fabula

sexta-feira, 29 de julho de 2011

EM SEDA

Por esta luz que me alumia
e me inventa em seda a estrada

entre a arte, alívio da memória,
e o mais trêmulo aceno do nada

- se com o mundo me acertei/me desavim,
já nem sei -

sou o que perdidamente
tomou rumo de mim.

(Fernando Campanella, 2010)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

SMILE

Viver quando a vida é um mar de rosas,
onde voga o batel das ilusões,
oh quanto é bom viver!

Quando a falena de asas luminosas
— Amor — se abriga em nossos corações,
como é triste morrer!

Viver, quando o Ideal é um sonho findo,
e o presente — amarga realidade...
como é triste viver!

Quando a Crença e o Amor não se extinguindo,
e empunhamos a taça da Saudade...
oh quanto é bom morrer!

Rosalia Sandoval
(Alagoas)
Da revista: "O Lyrio", nº 18 e 19, abril e maio 1904, PE

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Intervalo

Às vezes,
Todas as dores de uma vida inteira
Gritam...

Às vezes,
Nas mãos, os gestos de perdão
Petrificam...

Às vezes,
As canções dos anjos
Emudecem...

Às vezes,
Os silêncios , numa praia derradeira
Desaguam...

Às vezes...
Só às vezes...

Vera Muniz

Rochas

Não me apresse.
Meus olhos embriagam-se
Na visão altiva das montanhas...


Não tenho pressa.
Meu corpo inteiro dança
No ritmo idílico da eternidade...


Componho, pedra a pedra,
O jardim onde meu coração habita.

Vera Muniz

quarta-feira, 13 de julho de 2011

ALEGRIA

Trêmula gota de orvalho
Presa na teia de aranha,
Rebrilhando como estrela.

Helena Kolody
In: Correnteza

CICLO

Do telhado, solitário,
Sempre, um corvo centenário
Observa o pátio da escola.

Há um século, vive cheio
De meninos em recreio. . .
Como a vida não varia!

Claras risadas amenas
E sempre os mesmos brinquedos.
Mudam os rostos apenas.

Helena Kolody
In: Correnteza

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Compensação

O pensamento vestido de imaginados
Surge como um gânglio enfartado
E movimenta o cérebro cansado
Pelas distância sem rumo.
No caminho pedras e abismos
Se agarram ao nosso corpo frágil
E nos levam para a paisagem eterna
Num céu onde não há fim.
O mundo é um grande olho que espia tudo
E ensina um sofrimento mudo.
A luz pode ser esperança ou desespero
No olhar do transeunte que jamais veremos.
Sabemos que todos seguem o mesmo rumo
Nos jardins plantados de ciprestes.

Adalgisa Nery in Erosão

quarta-feira, 6 de julho de 2011

TAL VEZ, O QUE BASTE SABER*


I
Não que eu saiba tanto assim,
ou que menos me importe saber:
Há quantos, exatos incríveis anos,
não tomo um copo de cólera?

II 
Não que me caiba aventar aqui,
quão mal me comporte ou sobreviva ali.              
Ou arguir: Qual a veríssima idade
das algas, estrelas, pedras - da Luz?

Vez que tantos diferem de mim,
em tanta alegria ou tão pouca sorte,
qual a estival infame verdade do Tempo?

III
Sei, talvez suficiente, da noite, das luas,
dos rios e vaidades; do distraído
conviver com a morte – severa amante,
pão nosso primo de cada dia.

Conheço suas mais íntimas, venais,
profundas entranhas; becos, vielas e ruas
E elas, todas, muito mais sabem de mim!

IV 
Sei, da madrugada, o estuário das manhas
- malditas e surdas; a densa voz de cada cidade:
A farsa inteira – crua, da servil tempestade
com que profana e abafa a viva manhã!

V
Do dia, mares, amor e sol, já soube
- e quis - mais.       
Hoje, bem pouco sei. Mas o que sei me basta.

É este parco, velho, provável falso saber
que alimenta meu viver.
(Amanhã será outra noite!)

*Jairo De Britto, em
"Dunas de Marfim"

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Chuva Interior


Quando saia de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.

Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.

Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.

Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.

Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.

Mario Chamie
(1933-2011)

Mário Chamie *(Cajobi, 1 de abril de 1933 - São Paulo, 3 de julho de 2011) foi um poeta e crítico brasileiro. Era formado em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi secretário municipal de Cultura de São Paulo e criou a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo.
Com seu livro Lavra Lavra, de 1962, instaurou o "poema-práxis". Mário Chamie é um nome muito importante na história das vanguardas surgidas no final da década de 1950, como dissidente do concretismo e fundador da "poesia-práxis". Tem mais de 140 obras publicadas e traduzidas em 57 idiomas. Gilberto Freyre escreveu sobre Chamie: "A criatividade se apresenta tão dele e tão não somente dele que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas".
Foi professor convidado a dar aulas e palestras em diversas universidades pelo mundo, como Harvard, onde deu aulas para o astro da música Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, de quem guarda até hoje uma coleção de cartas que este lhe enviara. Chamie dava aulas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, e era locutor do programa 50 por 1, exibido pela Rede Record e apresentado por Álvaro Garnero.
Foi casado por muitos anos com a falecida Emilie Chamie, famosa por seus trabalhos gráficos de divulgação de peças publicitárias. Participou do Projeto da Academia Paulista de Letras (da qual foi membro) "Escritor na Escola", ministrando duas palestras sobre o ritmo da fala na poesia escrita, nos colégios EE. Prof. Narbal Fontes e EE. Dr. Octávio Mendes.
O poeta morreu em 3 de julho de 2011, no Hospital Oswaldo Cruz.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

MAIS TARDE, AINDA É MADRUGADA

os pássaros mais espertos
voltaram aos ninhos
quando viram a geada

(Fernando Campanella)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Manhã de Inverno

Coroada de névoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de sono e de preguiça,
Nos olhos da fantástica indolente.

Névoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capelas, lágrimas mais puras.

A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.

Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras úmidas da chuva;
Erma de flores, curva a planta o colo,
E o chão recebe o pranto da viúva.

Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas trêmulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua história escreve.

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
As névoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o vale;
Já se vão descobrindo os horizontes.

Sobe de todo o pano; eis aparece
Da natureza o esplêndido cenário;
Tudo ali preparou co’os sábios olhos
A suprema ciência do empresário.

Canta a orquestra dos pássaros no mato
A sinfonia alpestre, — a voz serena
Acordo os ecos tímidos do vale;
E a divina comédia invade a cena.

Machado de Assis,
in 'Falenas'

SOLITUDE

Silente, à tardinha,
desliza ao sabor da brisa
gaivota sozinha.

Delores Pires
"O Livro dos Haicais"

quarta-feira, 15 de junho de 2011

História Leal dos meus amores

(Felipe Daudt de Oliveira)

Eu tive a iniciação para a alegria
num tempo primitivo de paisagem,
em que, num fundo aberto de baía,
da argila das montanhas, emergia
a forma azul de um ídolo selvagem.

Entrei na imensidade dessas águas,
de alma feliz, cantando em tons de trova...
E ao batismo de um sol chispando fráguas
eu jurei esquecer antigas mágoas
numa esperança ideal de vida nova...

Felipe de Oliveira
in Vida Extinta (1911) (Duas primeiras estrofes)
Do Blog da sobrinha do autor.

Elegia de Maio


Longo, lento, infindável o crepúsculo.
Na larga enseada uma tinta imprecisa
antes do lusco-fusco
insinua-se em tudo, esmaiada.
Corre um brusco arrepio de brisa,
encrespa-se de leve a água vidrada.

Difuso em tudo, o ouro da luz de outono
resiste, como a clara
recordação de um longo dia para
e ainda hesita, antes da noite e o sono.

Escurecer que é quase amanhecer...
Um não sei que de claridade escura
diluído em tudo, em tudo arde e perdura:
já é quase noite o longo dia
a noite espera e sonha: ainda é dia.
Lá no alto, o adeus da tarde que ficou...
É dia ainda, o sol acorda agora
no largo oceano o sono de outra aurora,
mas derrama no seio do meu rio
todo o ouro do dia que passou.
Serena esta luz de ouro em meu outono:
recordação, antes do grande sono...

Augusto Meyer
Poesias, 1957

Augusto Meyer (Porto Alegre, 24 de janeiro de 1902 — Rio de Janeiro, 10 de julho de 1970) foi um jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia.

Era filho dos imigrantes alemães Augusto Ricardo Meyer e Rosa Meyer.

Colaborou em diversos jornais do Rio Grande do Sul, especialmente no Diário de Notícias e Correio do Povo, escrevendo poemas e ensaios críticos. Estreou na literatura em 1920, com o livro de poesias A ilusão querida, mas foi com os livros Coração verde, Giraluz e Poemas de Bilu que conquistou renome nacional. Foi diretor da Biblioteca Pública do Estado, em Porto Alegre.

Convidado por Getúlio Vargas para organizar o Instituto Nacional do Livro, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1937, junto a um grupo de intelectuais gaúchos. Foi diretor do INL durante cerca de trinta anos. Em 1947 recebeu o Prêmio Filipe de Oliveira na categoria Memórias e, em 1950, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra literária.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

NESTA SELVA

Nesta selva selvagem,
o homem persegue nuvens que o perseguem.

Neste reino
de insânia, o homem soluça.

O homem soluça: “Deus!” – e o eco tão longe
vai que talvez nem Deus possa escutá-lo.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

terça-feira, 7 de junho de 2011

A MEDIDA DO AZUL


A medida do azul é o estender-se
do olhar por sobre os seres. Esse arguto
perceber que se tem de não mover-se
o objeto - já por ser absoluto.

A medida do azul é ver um luto
contido em toda flor e o abster-se,
cada qual de assumir seu tom enxuto
e noutro que o não seu absorver-se.

A medida do azul, pelo contrário,
não é ver no horizonte o fim do olhar,
mas o ter desta vida aonde chegar,

pois ali tem o mundo o seu ovário:
e o retorno acontece, sempre estável,
eis que o azul é o início do infindável

Ernesto Penafort

Ernesto Penafort nasceu em Manaus, Amazonas, em 27 de
março de 1936 e faleceu na mesma cidade em 3 de junho de
1992. Na década de 60,estudou Ciências Sociais na
Universidade do Brasil, abandonando o curso devido ao
clima político vivido pelo País.

Formou-se em Direito pela Universidade Federal do
Amazonas. Era jornalista, poeta, contista. Morou 11 anos
no Rio de Janeiro e só não se formou em Ciências Sociais
pela Universidade do Brasil porque se desentendeu com um
professor faltando um ano para concluir o curso. Foi
redator da Rádio Nacional do Rio de Janeiro e da Folha de
São Paulo. Voltando para Manaus, trabalhou na Fundação
Cultural do Amazonas. Foi membro do Clube da Madrugada e
um de seus presidentes.

Um dos poetas mais importantes de sua geração. Sua
poesia se situa no contexto dos anos 70 do século passado,
época de opressão e cerceamento das liberdades.
Os textos de Penafort refletem inconformismo diante da
realidade, preocupação humana e anseio de liberdade. O
azul é metáfora de seu fazer poético.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Horas do meu tempo


Eternizei o vento com palavras
abrindo janelas da alma
à procura de um sinal.

Atravessei desertos do mundo
descrevendo as horas dos meus dias
tentando encontrar teu sorriso

Na música que me acompanhou
talvez amanhã te encontre
com jeito provocador
desafiando caminhos

Quando já não eras esperado
ao saber totalmente de mim
poderás partir
pois já levas contigo
a eternidade do amor.


Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 03/04/11
Código do Texto: T2886664

segunda-feira, 23 de maio de 2011

HORA MEMÓRIA


Há rostos que nunca se irão.
Outros jamais veremos
mas aí estão,
sempre.
Nunca conheceremos todos
os convivas.
Nem os mais próximos.
Sequer o irmão.
A memória retém os
que devem ficar.
Mesmo os que, fugazes,
teimam em partir.
Lembrar é fingir.


Antonio Fernando de Franceschi
— Tarde Revelada

FUGA


Desfez-se da inquietação,
abandonou a luta
e caminhou vagarosamente
para a aceitação...

A realidade do dia-a-dia
sempre foi para ele
desespero e agonia.

Cansado, deitou-se na relva,
olhou para o céu, bebeu azul e paz,
aspirou os aromas silvestres
depois fechou os olhos
e deixou a alma sonhar...

A bela alma foi brincar
no recanto mágico de seus desejos,
lá, onde há luz, música e beijos,
onde ninguém tem motivos para chorar...

Adormeceu sorrindo
ouvindo a flauta do vento
no arvoredo que dançava ali, ao lado...
E, sonhando dormindo
o mesmo sonho que sonhara acordado.


Zoraida H. Guimarães
in Na Passarela do Tempo

sexta-feira, 20 de maio de 2011

POLARIDADES


A vida?
Ora a encontro
Ora a perco
Teço e desfio
Amanheço com promessa
Pássaros
Depois anoiteço
Com desconcerto de gritos...

(Fernando Campanella, trecho do primeira poema que escrevi, em 1982.)

terça-feira, 17 de maio de 2011

A canção do mar


À sombra dos imensos coqueirais,
Ouço as queixas infindas e os tormentos
Do mar que entre gemidos espectrais,
Confessa à solidão seus sofrimentos!


Gosto de ouvir os mares turbulentos,
Que nas suas canções sentimentais,
Tem a monotonia dos lamentos
Que os sinos soltam pelas catedrais. . .


Escuto ao longe entre profundas magoas,
Os soluços monótonos das águas
Que vão aos poucos para o céu crescendo!


Num cenário de dor e convulsão,
Enquanto as ondas preguiçosas vão
Pela areia da praia se estendendo. . .



Jansen Filho
In: Obras Completas

QUALQUER TEMPO


Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'A Falta que Ama'

Recebido da amiga Amália Catarina.

MADRIGAL


Azul e pontual,
o céu acordou:
cada aurora
em seu horizonte.
Mas a pergunta,
como um gládio
em riste, cravou
seu aço no vazio
— e lá, imóvel, ficou
esperando a resposta
que não raiou.

Ivan Junqueira — Os Mortos
“in” Poesia Reunida
Recebido do amigo e escritor Delores Pires.

sábado, 7 de maio de 2011

Ser Mãe


Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Coelho Neto

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Berceuse


A chuva embala as árvores insones
Com baladas e lendas outonais...

Carícia d'água, cândida e piedosa,
Nos braços nus dos troncos espetrais.

Mantilha em que se abrigam tristes frondes,
Saudosas dos diademas estivais.

A chuva dependura pelos ramos
Braceletes de lúcidos cristais

O vento embala as árvores silentes
Com baladas e lendas outonais.

Helena Kolody

quarta-feira, 4 de maio de 2011

INVASÃO DA ALEGRIA


Ah! Que alegria de furtar manhãs! –
Um “venha “ de um tapa azul no sangue!
Tê-la a ensinar ao sol da nossa boca
Uma lição de madrigais meninos!

Brincar o cheiro da manhã molhada
Enxugando-a de amor! Depois gostá-la
Com um circo de prazer de ter achado
Dentro da música o assobio perdido.

Ter a manhã como uma caixa e abri-la
Para afofar seu dispersivo corpo
Até reaver os dedos sujos de asas!

Sorver manhãs com licor de almas dentro,
Num orgasmo castíssimo, surpreso
Que a dor insista em praticar a noite...

Homero Frei
In “Sonetos Brancos” (1998)

POEMAS DO VENTO


Gastar-se no tempo
diluir-se no vento
evolar-se no sonho
deixando
- haverá quem o colha? -
um resíduo...

Memória.

Levarei por onde ande
uma inquietação mais nada
impulso vital que extingo
dentro de um pouco de lama.

Tal que o vento que baila
fazendo seu corpo efêmero
com a poeira das estradas...


Menotti Del Picchia

terça-feira, 19 de abril de 2011

EPITALÂMIO


Apenas as gotas de chuva: compassadas e mansas.
A folhagem, lá fora, adormeceu feliz.
Despertando na relva, cantam grilos baixinho.
A confidência da chuva, a confidência dos grilos,
Tudo que vem da noite é surdina e doçura.

Certeza não direi, mas direi: esperança.
Deves pensar em mim neste momento mesmo.
Teu pensamento é o meu, tua esperança é a minha.
Através do espaço,não é verdade? as nossas mãos
Estão apertadas, em segredo.
Sinto que o nosso amor era grande como a noite
E que o melhor de nós habita na distância
Que nos espera.


Ribeiro Couto
In Poesias Consagradas Vol.3

Elegia


Que quer o vento?
a cada instante
Este lamento
Passa a porta
Dizendo: abre...

Vento que assusta
Nas horas frias
Da noite feia,
Vindo de longe,
Das ermas praias.

Andam de ronda
Nesse violento
longo queixume,
As invisíveis
Bocas dos mortos.

Também um dia,
Estando eu morto,
Virei queixar-me
Na tua porta
Virei no vento
Mas não de inverno,
Nas horas frias
Das noites feias.

Virei no vento
Da primavera,
Em tua boca
Serei carícia,
Cheiro de flores
Que estão lá fora
Na noite quente.

Virei no vento...
Direi: acorda...


Ribeiro Couto

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A NOITE


Um vento fresco e suave entre os pinhais murmura;
A Noite, aos ombros solta a desgrenhada coma,
No seu plaustro de crepe, entre as nuvens assoma ...
Tornam-se o campo e o céu de uma cor mais escura.

Um novo aspecto em tudo. um novo e bom aroma
De látiros exala a amplíssima verdura.
Num hausto longo, a Noite, aos ares a frescura
Doce, entreabrindo a flor dos negros lábios, toma ...

Por vales e rechãs caminha, passo a passo,
Atento o ouvido, à escuta ... E no seu plaustro enorme
Cujo rumor desperta a placidez do espaço,

À encantada região das estrelas se eleva ...
E, ao ver que dorme o espaço e o mundo inteiro dorme,
Volve, quieta, de novo, à habitação da treva.


Francisca Júlia
in Poesias

Francisca Júlia da Silva Munster (Xiririca, 31 de agosto de 1871 - São Paulo, 1 de novembro de 1920)

sábado, 26 de março de 2011

O ausente


Tudo que foi luz
e hoje desmaia em treva
sob a errática
e suas confusas pétalas
tudo o que amamos e em desejo tivemos
com sede amarga de posse
em lábios angustiados
renasce deste silêncio de orfandade
e da vida faz cinza
e morte.
O inverno é que não estejas
senão nos olhos áridos da insônia
ai, que não estejas e o sol já não aquece
e o mar não dança entre rochedos
e o pássaro é um triste vôo
que adormece.


Dora Ferreira da Silva
Poesia Reunida (1999)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Delírio Azul


"E flores verdes no ar brandamente se movem:
"Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio;
Em esmeralda flui a água verde do rio,
E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem..."
(Olavo Bilac)



Azul a tarde, azul o céu e o mar,
Azul o tempo, que não vai passar,
Enredado na trama opalescente.

Azul o teu olhar, meu sonho louco,
Essa ventura que durou tão pouco,
Esta saudade que me torna ausente.

Lividez de turquesa e água-marinha,
Na visão de berilo, que é só minha,
Em nuanças de índigo delira.

Heráldico pavés, em blau tingido,
O mundo se desfaz em colorido,
Lápis-Lazuli, em campo de safira.

Alba Saltiel Bianco
In Música do Vento

Do Blog da amiga Dione Coppi.

terça-feira, 15 de março de 2011

Auto-Retrato


Certa vez, numa aventura estranha
fugi
do estreito túmulo em que me estorcia
para uma ampliação sem fim.
Quando voltei
e senti, de novo, ferindo-me, o peso dos grilhões,
então não mais sabia quem eu era.
E nunca mais soube quem eu sou.
Talvez a sombra triste de um sonho de poeta.
Talvez a misteriosa alma de uma estrela
a guardar ainda no profundo cerne
a ilógica saudade de um passado astral.


Moacyr Félix
de Singular Plural
Editora Record.

quarta-feira, 9 de março de 2011

MARCHA DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS


Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.
Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.

E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...

A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.

Porque são tantas coisas azuis
Há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...

Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz.

Vinicius de Moraes — Cancioneiro / Canções Populares
“in” Vinicius de Moraes Poesia Completa e Prosa

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Requiescat


Por que me vens, com o mesmo riso,
Por que me vens, com a mesma voz,
Lembrar aquele Paraíso,
Extinto para nós?

Por que levantas esta lousa?
Por que, entre as sombras funerais,
Vens acordar o que repousa,
O que não vive mais?

Ah! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha e que fui teu:
Não lembres mais que nos amamos,
Que o nosso amor morreu!

O amor é uma árvore ampla, e rica
De frutos de ouro, e de embriaguez:
Infelizmente, frutifica
Apenas uma vez...

Sob essas ramas perfumadas,
Teus beijos todos eram meus:
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.

Mas os teus beijos esfriaram.
Lembra-te bem! lembra-te bem!
E as folhas pálidas murcharam,
E o nosso amor também.

Ah! frutos de ouro, que colhemos,
Frutos da cálida estação,
Com que delícia vos mordemos,
Com que sofreguidão!

Lembras-te? os frutos eram doces...
Se ainda os pudéssemos provar!
Se eu fosse teu... se minha fosses,
E eu te pudesse amar...

Em vão, porém, me beijas, louca!
Teu beijo, a palpitar e a arder,
Não achará, na minha boca,
Outro para o acolher.

Não há mais beijos, nem mais pranto!
Lembras-te? quando te perdi
Beijei-te tanto, chorei tanto,
Com tanto amor por ti,

Que os olhos, vês? já tenho enxutos,
E a minha boca se cansou:
A árvore já não tem mais frutos!
Adeus! tudo acabou!

Outras paixões, outras idades!
Sejam os nossos corações
Dois relicários de saudades
E de recordações.

Ah! esqueçamos, esqueçamos!
Durma tranqüilo o nosso amor
Na cova rasa onde o enterramos
Entre os rosais em flor...


Olavo Bilac,
in "Poesias"
(Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1865 — Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1918)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Poema De Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

''Exausto''


(Para Adélia Prado, que completou dia 13/12/2011 , 76 anos)

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Adélia Prado
In "Bagagem" (1993)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

No curso do dia

Agora que me vou é que me deixo
ficar perdidamente nesta estrada:
vou numa roda viva, mas sem eixo,
numa coisa futura, mas passada.


Vou e não vou e assim se vai compondo
o que me está aos poucos dividindo:
não a zoada azul de um marimbondo,
mas a certeza de um amor tão lindo.


Alguma coisa vai ficando, além do
tempo em que me dou e me reparto:
ficou meu coração, ficou batendo,
batendo na penumbra de algum quarto.


Ficou o que mais quero e vai comigo:
molharam nalgum curso os seus cabelos
para compor as novas semifusas
dos meus silêncios, dos meus atropelos.


Mas no curso dos dias que há por dentro
de cada um de nós, na nossa história,
alguém por certo encontrará o centro
de tudo que ficou na trajetória.


E o que ficou, ficou: raiz noturna
enterrada nas ruas, nos quintais;
vento varrendo o pó de alguma furna,
chuvas de pedra, alguns trovões, Goiás.


Gilberto Mendonça Teles
(Sociologia goiana, 1982, p.113)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Névoas

À frente a lua, atrás os sonhos,
qual a distância a percorrer?
Não a suspeitam nossos olhos:
a bruma sobe das estradas
e desorienta homens e bússolas.

Mesmo que voássemos bem alto,
e os céus se abrissem para nós,
nem mesmo assim divisaríamos
os frutos rubros que buscamos
pelos pomares das estrelas.

Como condores, fronte a pino,
cortando os ares meio tontos,
em vez de dar com o rumo certo
cairíamos na terra cega,
ruiríamos no mar opaco.

Este é o castigo que nos deram:
imaginar com vista ousada,
porém achar grossas neblinas
fechando o mundo que buscamos
por tê-lo visto em pensamento.

E assim deixamos para trás
os sonhos, deuses compassivos:
sem os podermos contemplar
olhamos como um branco enigma
- nevoentos, zonzos os caminhos –

somente a lua à nossa frente.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

E as vidas nelas estão


Tempo passa pela catraca
sonoridade dilacerada
equívocos planando
em jovens nuvens carregadas.

Lágrimas contidas mapeando
alegres imagens
vento sul na cela da oração
voa no globo mortal.

Uníssono rompido no etéreo mudo,
abotoando as violetas prematuras.

Nenhuma palavra veste a essência do sentimento.

Azul do véu
descortina
lábios de anil.

Espaço acenando ao vago instante
em paginas gaivotas
cores internas florescem
despertando a aurora orvalhada.

Utopia dos gestos incertos
abraçando um adágio forte.
Partitura
notas de saudades.

Presságios e calafrios
vazios e arrepios
interrogação
põe fim flor âmbar do cais.

Crepúsculo
crava os dentes
boca trava os giros,
gozos em déjá vu,
sorriso na moldura
sonho vivo consome a mente.

Foge o desespero
pela lateral da estação universal,
vãos distantes
paisagem descansa
por um olhar fundo marcado
presença ausente intacta natural.

Floresta estuprada chora.

Deságua
clamor suave de magoas
por falta de um toque, expressivo
perfume sol sentido aquece.


Aharon

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Como estão as montanhas


Como estão as montanhas
por detrás do horizonte,
e o litoral do sonho
além da nossa fronte;


como, no oceano denso,
anêmona perfeita
sua estrela desdobra
e o cego abismo aceita;


como, atrás das imagens,
a idéia se desenha,
e o oráculo cintila
na impenetrável brenha;


assim fica encerrrada,
assim, desconhecida,
nossa extrema verdade
na noite irreal da vida.


Cecília Meireles
In: Canções (1956)

Cecília Meireles nascimento 07/11/1901 - morte 09/11/1964

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

BEM-AVENTURANÇA


Graças, por todo pão e mistério
pela palavra soerguida
pela poesia
pela vida sobre a vida.

(Fernando Campanella)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

(Fotografia do poeta mineiro Fernando Campanella)


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Viagem

Quem é alguém que caminha
Toda a manhã com tristeza
Dentro de minhas roupas, perdido
Além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
Como se levassem nos bolsos
Doces geografias, pensamentos
De além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
Vem morrer no longe horizonte
Do meu quarto, onde esse alguém
É vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
Coisas em voz que não ouço.
- Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

FILHO PRÓDIGO


I

Ele me olha
com a expectativa do mundo.
Sonda o que sei,
pensa que eu sei.

II

Ele me acompanha
com os olhos da vida.
Mira o que dei,
julga o que eu sei.

III

Ele me abraça
com os anos da infância.
Acha que sou rei,
acredita que eu voltei.

IV

Ele me beija
com os lábios da inocência.
Escolhe as palavras,
multiplica suas vidas.

V

Ele me descobre
no ocaso da existência.
Confere o que sei:
já sabe que não sou rei.


Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

Foto do poeta e seu filho Leonardo.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

IDEAL

Preciso semear
em todos os horizontes
brancas paisagens de aves
. . . sendeiro luz aos humanos.


Preciso ver germinar
. . . lá, muito lá,
beijos se encontrando,
desertos sussurrando . . .


preciso ver florescer
nessas vastidões submissas
pensamentos em largos vôos. . .


Desejo então,
nessas nesses raras,
absorver perfeições de céus
. . . ódios sorrindo aos perdões
. . . braços recolhendo ausências
. . . silêncios desenhando canções.



Alvina Tzovenos
In: Buscas de Infinitos

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Feliz Ano-Novo Judaico 5772

Um sorriso se faz
olha lá os passos de luz vindo
te abraçar feito azul,
na tua estrada,
tua história,
tua memória,
teu coração.
Bem Vindo
doce abraço
aromas de mel
e maçã.
e o que passou deixa ir
feliz ou não.
Vai nascer um big bang
momento virgem
sair do mar
o sol
a vida
o alimento,
na alma
uma estrela
brilhando
ano novo
chegando.

Aharon

מל

חיוך גורם
נראה במורד המדרגות של אור מגיע
אני מחבק אותך כמו האור,
הדרך שלך,
הסיפור שלך,
הזיכרון שלך,
הלב שלך.
רצוי
מתוקה חיבוק
ארומות של דבש
וגם תפוח.
ומה להרפות עכשיו
מאושר או לא.
ייוולד המפץ הגדול
בתולה רגע
מן הים
השמש
חיים
אוכל,
נשמה
כוכב
מבריק
ראש השנה
הקרובים.

אהרון

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Veleiros de Papel

Há no ar uma sede
ferindo a alma dos pescadores,
roendo barcos
e velas em lance de rede.

O homem pelas sebes
Caminha,
recolhendo estrelas
entre as mãos - no céu.

Nas ribanceiras,
crianças empalmam rios,
plantam neve nas colinas
em brancas tendas de areia.

O cansaço dos inocente
põe pedras nos olhos,
fere de morte os covardes,
desmonta velhas embarcações.

Se nada segues
pouco vale o destino,
a morte cavalga veloz
sempre a caminho.

O homem vive
de pescar o tempo:
ora em veleiros de papel,
ora em veleiros de vento

Onévio Antonio Zabot
Joinville, Santa Catarina
Brasil

Copiado da página de minha amiga Dione.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os ventos


Não há, nos ventos,
a liberdade da morte,
embora sejam implacáveis e
jamais perdoem as folhas secas.

Todos os ventos têm nome
mas não se conhece nenhum
de perto, embora
se agarrem a você
e desorganizem a harmonia.

Os ventos não têm forma
mas sabemos todas as suas aspirações
e os seus amores com o mar e as árvores.

Os ventos não têm a liberdade da morte
diluídos na essência
do que nunca aconteceu.

Ashford Castle, Irlanda, julho 92



Álvaro Pacheco
In Geometria dos Ventos (1992)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Eu, no tempo



Meu espírito caminha irreversivelmente para a irrealidade de tudo.
O universo para, de repente, à espera de minha infância.
Tudo repousa em seu lugar.
O tempo, no relógio.
O silencio, na pedra.
Jogo as máscaras fora e me identifico comigo
que me esperava há séculos.

Emílio Moura
In: Itinerário Poético
Entre o Real e a Fabula

sexta-feira, 29 de julho de 2011

EM SEDA

Por esta luz que me alumia
e me inventa em seda a estrada

entre a arte, alívio da memória,
e o mais trêmulo aceno do nada

- se com o mundo me acertei/me desavim,
já nem sei -

sou o que perdidamente
tomou rumo de mim.

(Fernando Campanella, 2010)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

SMILE

Viver quando a vida é um mar de rosas,
onde voga o batel das ilusões,
oh quanto é bom viver!

Quando a falena de asas luminosas
— Amor — se abriga em nossos corações,
como é triste morrer!

Viver, quando o Ideal é um sonho findo,
e o presente — amarga realidade...
como é triste viver!

Quando a Crença e o Amor não se extinguindo,
e empunhamos a taça da Saudade...
oh quanto é bom morrer!

Rosalia Sandoval
(Alagoas)
Da revista: "O Lyrio", nº 18 e 19, abril e maio 1904, PE

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Intervalo

Às vezes,
Todas as dores de uma vida inteira
Gritam...

Às vezes,
Nas mãos, os gestos de perdão
Petrificam...

Às vezes,
As canções dos anjos
Emudecem...

Às vezes,
Os silêncios , numa praia derradeira
Desaguam...

Às vezes...
Só às vezes...

Vera Muniz

Rochas

Não me apresse.
Meus olhos embriagam-se
Na visão altiva das montanhas...


Não tenho pressa.
Meu corpo inteiro dança
No ritmo idílico da eternidade...


Componho, pedra a pedra,
O jardim onde meu coração habita.

Vera Muniz

quarta-feira, 13 de julho de 2011

ALEGRIA

Trêmula gota de orvalho
Presa na teia de aranha,
Rebrilhando como estrela.

Helena Kolody
In: Correnteza

CICLO

Do telhado, solitário,
Sempre, um corvo centenário
Observa o pátio da escola.

Há um século, vive cheio
De meninos em recreio. . .
Como a vida não varia!

Claras risadas amenas
E sempre os mesmos brinquedos.
Mudam os rostos apenas.

Helena Kolody
In: Correnteza

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Compensação

O pensamento vestido de imaginados
Surge como um gânglio enfartado
E movimenta o cérebro cansado
Pelas distância sem rumo.
No caminho pedras e abismos
Se agarram ao nosso corpo frágil
E nos levam para a paisagem eterna
Num céu onde não há fim.
O mundo é um grande olho que espia tudo
E ensina um sofrimento mudo.
A luz pode ser esperança ou desespero
No olhar do transeunte que jamais veremos.
Sabemos que todos seguem o mesmo rumo
Nos jardins plantados de ciprestes.

Adalgisa Nery in Erosão

quarta-feira, 6 de julho de 2011

TAL VEZ, O QUE BASTE SABER*


I
Não que eu saiba tanto assim,
ou que menos me importe saber:
Há quantos, exatos incríveis anos,
não tomo um copo de cólera?

II 
Não que me caiba aventar aqui,
quão mal me comporte ou sobreviva ali.              
Ou arguir: Qual a veríssima idade
das algas, estrelas, pedras - da Luz?

Vez que tantos diferem de mim,
em tanta alegria ou tão pouca sorte,
qual a estival infame verdade do Tempo?

III
Sei, talvez suficiente, da noite, das luas,
dos rios e vaidades; do distraído
conviver com a morte – severa amante,
pão nosso primo de cada dia.

Conheço suas mais íntimas, venais,
profundas entranhas; becos, vielas e ruas
E elas, todas, muito mais sabem de mim!

IV 
Sei, da madrugada, o estuário das manhas
- malditas e surdas; a densa voz de cada cidade:
A farsa inteira – crua, da servil tempestade
com que profana e abafa a viva manhã!

V
Do dia, mares, amor e sol, já soube
- e quis - mais.       
Hoje, bem pouco sei. Mas o que sei me basta.

É este parco, velho, provável falso saber
que alimenta meu viver.
(Amanhã será outra noite!)

*Jairo De Britto, em
"Dunas de Marfim"

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Chuva Interior


Quando saia de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.

Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.

Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.

Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.

Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.

Mario Chamie
(1933-2011)

Mário Chamie *(Cajobi, 1 de abril de 1933 - São Paulo, 3 de julho de 2011) foi um poeta e crítico brasileiro. Era formado em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi secretário municipal de Cultura de São Paulo e criou a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo.
Com seu livro Lavra Lavra, de 1962, instaurou o "poema-práxis". Mário Chamie é um nome muito importante na história das vanguardas surgidas no final da década de 1950, como dissidente do concretismo e fundador da "poesia-práxis". Tem mais de 140 obras publicadas e traduzidas em 57 idiomas. Gilberto Freyre escreveu sobre Chamie: "A criatividade se apresenta tão dele e tão não somente dele que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas".
Foi professor convidado a dar aulas e palestras em diversas universidades pelo mundo, como Harvard, onde deu aulas para o astro da música Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, de quem guarda até hoje uma coleção de cartas que este lhe enviara. Chamie dava aulas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, e era locutor do programa 50 por 1, exibido pela Rede Record e apresentado por Álvaro Garnero.
Foi casado por muitos anos com a falecida Emilie Chamie, famosa por seus trabalhos gráficos de divulgação de peças publicitárias. Participou do Projeto da Academia Paulista de Letras (da qual foi membro) "Escritor na Escola", ministrando duas palestras sobre o ritmo da fala na poesia escrita, nos colégios EE. Prof. Narbal Fontes e EE. Dr. Octávio Mendes.
O poeta morreu em 3 de julho de 2011, no Hospital Oswaldo Cruz.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

MAIS TARDE, AINDA É MADRUGADA

os pássaros mais espertos
voltaram aos ninhos
quando viram a geada

(Fernando Campanella)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Manhã de Inverno

Coroada de névoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de sono e de preguiça,
Nos olhos da fantástica indolente.

Névoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capelas, lágrimas mais puras.

A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.

Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras úmidas da chuva;
Erma de flores, curva a planta o colo,
E o chão recebe o pranto da viúva.

Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas trêmulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua história escreve.

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
As névoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o vale;
Já se vão descobrindo os horizontes.

Sobe de todo o pano; eis aparece
Da natureza o esplêndido cenário;
Tudo ali preparou co’os sábios olhos
A suprema ciência do empresário.

Canta a orquestra dos pássaros no mato
A sinfonia alpestre, — a voz serena
Acordo os ecos tímidos do vale;
E a divina comédia invade a cena.

Machado de Assis,
in 'Falenas'

SOLITUDE

Silente, à tardinha,
desliza ao sabor da brisa
gaivota sozinha.

Delores Pires
"O Livro dos Haicais"

quarta-feira, 15 de junho de 2011

História Leal dos meus amores

(Felipe Daudt de Oliveira)

Eu tive a iniciação para a alegria
num tempo primitivo de paisagem,
em que, num fundo aberto de baía,
da argila das montanhas, emergia
a forma azul de um ídolo selvagem.

Entrei na imensidade dessas águas,
de alma feliz, cantando em tons de trova...
E ao batismo de um sol chispando fráguas
eu jurei esquecer antigas mágoas
numa esperança ideal de vida nova...

Felipe de Oliveira
in Vida Extinta (1911) (Duas primeiras estrofes)
Do Blog da sobrinha do autor.

Elegia de Maio


Longo, lento, infindável o crepúsculo.
Na larga enseada uma tinta imprecisa
antes do lusco-fusco
insinua-se em tudo, esmaiada.
Corre um brusco arrepio de brisa,
encrespa-se de leve a água vidrada.

Difuso em tudo, o ouro da luz de outono
resiste, como a clara
recordação de um longo dia para
e ainda hesita, antes da noite e o sono.

Escurecer que é quase amanhecer...
Um não sei que de claridade escura
diluído em tudo, em tudo arde e perdura:
já é quase noite o longo dia
a noite espera e sonha: ainda é dia.
Lá no alto, o adeus da tarde que ficou...
É dia ainda, o sol acorda agora
no largo oceano o sono de outra aurora,
mas derrama no seio do meu rio
todo o ouro do dia que passou.
Serena esta luz de ouro em meu outono:
recordação, antes do grande sono...

Augusto Meyer
Poesias, 1957

Augusto Meyer (Porto Alegre, 24 de janeiro de 1902 — Rio de Janeiro, 10 de julho de 1970) foi um jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia.

Era filho dos imigrantes alemães Augusto Ricardo Meyer e Rosa Meyer.

Colaborou em diversos jornais do Rio Grande do Sul, especialmente no Diário de Notícias e Correio do Povo, escrevendo poemas e ensaios críticos. Estreou na literatura em 1920, com o livro de poesias A ilusão querida, mas foi com os livros Coração verde, Giraluz e Poemas de Bilu que conquistou renome nacional. Foi diretor da Biblioteca Pública do Estado, em Porto Alegre.

Convidado por Getúlio Vargas para organizar o Instituto Nacional do Livro, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1937, junto a um grupo de intelectuais gaúchos. Foi diretor do INL durante cerca de trinta anos. Em 1947 recebeu o Prêmio Filipe de Oliveira na categoria Memórias e, em 1950, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra literária.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

NESTA SELVA

Nesta selva selvagem,
o homem persegue nuvens que o perseguem.

Neste reino
de insânia, o homem soluça.

O homem soluça: “Deus!” – e o eco tão longe
vai que talvez nem Deus possa escutá-lo.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

terça-feira, 7 de junho de 2011

A MEDIDA DO AZUL


A medida do azul é o estender-se
do olhar por sobre os seres. Esse arguto
perceber que se tem de não mover-se
o objeto - já por ser absoluto.

A medida do azul é ver um luto
contido em toda flor e o abster-se,
cada qual de assumir seu tom enxuto
e noutro que o não seu absorver-se.

A medida do azul, pelo contrário,
não é ver no horizonte o fim do olhar,
mas o ter desta vida aonde chegar,

pois ali tem o mundo o seu ovário:
e o retorno acontece, sempre estável,
eis que o azul é o início do infindável

Ernesto Penafort

Ernesto Penafort nasceu em Manaus, Amazonas, em 27 de
março de 1936 e faleceu na mesma cidade em 3 de junho de
1992. Na década de 60,estudou Ciências Sociais na
Universidade do Brasil, abandonando o curso devido ao
clima político vivido pelo País.

Formou-se em Direito pela Universidade Federal do
Amazonas. Era jornalista, poeta, contista. Morou 11 anos
no Rio de Janeiro e só não se formou em Ciências Sociais
pela Universidade do Brasil porque se desentendeu com um
professor faltando um ano para concluir o curso. Foi
redator da Rádio Nacional do Rio de Janeiro e da Folha de
São Paulo. Voltando para Manaus, trabalhou na Fundação
Cultural do Amazonas. Foi membro do Clube da Madrugada e
um de seus presidentes.

Um dos poetas mais importantes de sua geração. Sua
poesia se situa no contexto dos anos 70 do século passado,
época de opressão e cerceamento das liberdades.
Os textos de Penafort refletem inconformismo diante da
realidade, preocupação humana e anseio de liberdade. O
azul é metáfora de seu fazer poético.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Horas do meu tempo


Eternizei o vento com palavras
abrindo janelas da alma
à procura de um sinal.

Atravessei desertos do mundo
descrevendo as horas dos meus dias
tentando encontrar teu sorriso

Na música que me acompanhou
talvez amanhã te encontre
com jeito provocador
desafiando caminhos

Quando já não eras esperado
ao saber totalmente de mim
poderás partir
pois já levas contigo
a eternidade do amor.


Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 03/04/11
Código do Texto: T2886664

segunda-feira, 23 de maio de 2011

HORA MEMÓRIA


Há rostos que nunca se irão.
Outros jamais veremos
mas aí estão,
sempre.
Nunca conheceremos todos
os convivas.
Nem os mais próximos.
Sequer o irmão.
A memória retém os
que devem ficar.
Mesmo os que, fugazes,
teimam em partir.
Lembrar é fingir.


Antonio Fernando de Franceschi
— Tarde Revelada

FUGA


Desfez-se da inquietação,
abandonou a luta
e caminhou vagarosamente
para a aceitação...

A realidade do dia-a-dia
sempre foi para ele
desespero e agonia.

Cansado, deitou-se na relva,
olhou para o céu, bebeu azul e paz,
aspirou os aromas silvestres
depois fechou os olhos
e deixou a alma sonhar...

A bela alma foi brincar
no recanto mágico de seus desejos,
lá, onde há luz, música e beijos,
onde ninguém tem motivos para chorar...

Adormeceu sorrindo
ouvindo a flauta do vento
no arvoredo que dançava ali, ao lado...
E, sonhando dormindo
o mesmo sonho que sonhara acordado.


Zoraida H. Guimarães
in Na Passarela do Tempo

sexta-feira, 20 de maio de 2011

POLARIDADES


A vida?
Ora a encontro
Ora a perco
Teço e desfio
Amanheço com promessa
Pássaros
Depois anoiteço
Com desconcerto de gritos...

(Fernando Campanella, trecho do primeira poema que escrevi, em 1982.)

terça-feira, 17 de maio de 2011

A canção do mar


À sombra dos imensos coqueirais,
Ouço as queixas infindas e os tormentos
Do mar que entre gemidos espectrais,
Confessa à solidão seus sofrimentos!


Gosto de ouvir os mares turbulentos,
Que nas suas canções sentimentais,
Tem a monotonia dos lamentos
Que os sinos soltam pelas catedrais. . .


Escuto ao longe entre profundas magoas,
Os soluços monótonos das águas
Que vão aos poucos para o céu crescendo!


Num cenário de dor e convulsão,
Enquanto as ondas preguiçosas vão
Pela areia da praia se estendendo. . .



Jansen Filho
In: Obras Completas

QUALQUER TEMPO


Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'A Falta que Ama'

Recebido da amiga Amália Catarina.

MADRIGAL


Azul e pontual,
o céu acordou:
cada aurora
em seu horizonte.
Mas a pergunta,
como um gládio
em riste, cravou
seu aço no vazio
— e lá, imóvel, ficou
esperando a resposta
que não raiou.

Ivan Junqueira — Os Mortos
“in” Poesia Reunida
Recebido do amigo e escritor Delores Pires.

sábado, 7 de maio de 2011

Ser Mãe


Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Coelho Neto

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Berceuse


A chuva embala as árvores insones
Com baladas e lendas outonais...

Carícia d'água, cândida e piedosa,
Nos braços nus dos troncos espetrais.

Mantilha em que se abrigam tristes frondes,
Saudosas dos diademas estivais.

A chuva dependura pelos ramos
Braceletes de lúcidos cristais

O vento embala as árvores silentes
Com baladas e lendas outonais.

Helena Kolody

quarta-feira, 4 de maio de 2011

INVASÃO DA ALEGRIA


Ah! Que alegria de furtar manhãs! –
Um “venha “ de um tapa azul no sangue!
Tê-la a ensinar ao sol da nossa boca
Uma lição de madrigais meninos!

Brincar o cheiro da manhã molhada
Enxugando-a de amor! Depois gostá-la
Com um circo de prazer de ter achado
Dentro da música o assobio perdido.

Ter a manhã como uma caixa e abri-la
Para afofar seu dispersivo corpo
Até reaver os dedos sujos de asas!

Sorver manhãs com licor de almas dentro,
Num orgasmo castíssimo, surpreso
Que a dor insista em praticar a noite...

Homero Frei
In “Sonetos Brancos” (1998)

POEMAS DO VENTO


Gastar-se no tempo
diluir-se no vento
evolar-se no sonho
deixando
- haverá quem o colha? -
um resíduo...

Memória.

Levarei por onde ande
uma inquietação mais nada
impulso vital que extingo
dentro de um pouco de lama.

Tal que o vento que baila
fazendo seu corpo efêmero
com a poeira das estradas...


Menotti Del Picchia

terça-feira, 19 de abril de 2011

EPITALÂMIO


Apenas as gotas de chuva: compassadas e mansas.
A folhagem, lá fora, adormeceu feliz.
Despertando na relva, cantam grilos baixinho.
A confidência da chuva, a confidência dos grilos,
Tudo que vem da noite é surdina e doçura.

Certeza não direi, mas direi: esperança.
Deves pensar em mim neste momento mesmo.
Teu pensamento é o meu, tua esperança é a minha.
Através do espaço,não é verdade? as nossas mãos
Estão apertadas, em segredo.
Sinto que o nosso amor era grande como a noite
E que o melhor de nós habita na distância
Que nos espera.


Ribeiro Couto
In Poesias Consagradas Vol.3

Elegia


Que quer o vento?
a cada instante
Este lamento
Passa a porta
Dizendo: abre...

Vento que assusta
Nas horas frias
Da noite feia,
Vindo de longe,
Das ermas praias.

Andam de ronda
Nesse violento
longo queixume,
As invisíveis
Bocas dos mortos.

Também um dia,
Estando eu morto,
Virei queixar-me
Na tua porta
Virei no vento
Mas não de inverno,
Nas horas frias
Das noites feias.

Virei no vento
Da primavera,
Em tua boca
Serei carícia,
Cheiro de flores
Que estão lá fora
Na noite quente.

Virei no vento...
Direi: acorda...


Ribeiro Couto

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A NOITE


Um vento fresco e suave entre os pinhais murmura;
A Noite, aos ombros solta a desgrenhada coma,
No seu plaustro de crepe, entre as nuvens assoma ...
Tornam-se o campo e o céu de uma cor mais escura.

Um novo aspecto em tudo. um novo e bom aroma
De látiros exala a amplíssima verdura.
Num hausto longo, a Noite, aos ares a frescura
Doce, entreabrindo a flor dos negros lábios, toma ...

Por vales e rechãs caminha, passo a passo,
Atento o ouvido, à escuta ... E no seu plaustro enorme
Cujo rumor desperta a placidez do espaço,

À encantada região das estrelas se eleva ...
E, ao ver que dorme o espaço e o mundo inteiro dorme,
Volve, quieta, de novo, à habitação da treva.


Francisca Júlia
in Poesias

Francisca Júlia da Silva Munster (Xiririca, 31 de agosto de 1871 - São Paulo, 1 de novembro de 1920)

sábado, 26 de março de 2011

O ausente


Tudo que foi luz
e hoje desmaia em treva
sob a errática
e suas confusas pétalas
tudo o que amamos e em desejo tivemos
com sede amarga de posse
em lábios angustiados
renasce deste silêncio de orfandade
e da vida faz cinza
e morte.
O inverno é que não estejas
senão nos olhos áridos da insônia
ai, que não estejas e o sol já não aquece
e o mar não dança entre rochedos
e o pássaro é um triste vôo
que adormece.


Dora Ferreira da Silva
Poesia Reunida (1999)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Delírio Azul


"E flores verdes no ar brandamente se movem:
"Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio;
Em esmeralda flui a água verde do rio,
E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem..."
(Olavo Bilac)



Azul a tarde, azul o céu e o mar,
Azul o tempo, que não vai passar,
Enredado na trama opalescente.

Azul o teu olhar, meu sonho louco,
Essa ventura que durou tão pouco,
Esta saudade que me torna ausente.

Lividez de turquesa e água-marinha,
Na visão de berilo, que é só minha,
Em nuanças de índigo delira.

Heráldico pavés, em blau tingido,
O mundo se desfaz em colorido,
Lápis-Lazuli, em campo de safira.

Alba Saltiel Bianco
In Música do Vento

Do Blog da amiga Dione Coppi.

terça-feira, 15 de março de 2011

Auto-Retrato


Certa vez, numa aventura estranha
fugi
do estreito túmulo em que me estorcia
para uma ampliação sem fim.
Quando voltei
e senti, de novo, ferindo-me, o peso dos grilhões,
então não mais sabia quem eu era.
E nunca mais soube quem eu sou.
Talvez a sombra triste de um sonho de poeta.
Talvez a misteriosa alma de uma estrela
a guardar ainda no profundo cerne
a ilógica saudade de um passado astral.


Moacyr Félix
de Singular Plural
Editora Record.

quarta-feira, 9 de março de 2011

MARCHA DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS


Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.
Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.

E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...

A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.

Porque são tantas coisas azuis
Há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...

Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz.

Vinicius de Moraes — Cancioneiro / Canções Populares
“in” Vinicius de Moraes Poesia Completa e Prosa