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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

‘Interrogação’


Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite.

Emílio Moura
de Itinerário Poético

'INFÂNCIA'


Eu fui meu
como o espaço
era do pássaro.

Eu me soltava
em cantos e plumas
pelos campos da manhã.

Eu brincava comigo:
eu era eu
e o meu amigo.

Eu me falava baixo
para não espantar
o meu silêncio.

Eu era pequeno
e imenso.


Wilson Pereira
(Minas Gerais 1.949)

Poema de Raul de Leoni


Ao menos uma vez em toda a vida
A Verdade passou pela alma de cada homem...
Passou muito alto, muito vaga, muito longe,
Como os fantasmas, que mal chegam, somem,
Passou em sombra, num vôo refletida
No espelho da água trêmula de um rio...

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade !
Passou uma só vez em toda a vida
E sempre dessa vez a alma dos homens
Estava distraída,
E não reconheceu na sombra desse vôo
A ave ideal que planava no alto azul...
Quando volveu os olhos para a altura
Ela já ia desaparecendo...

Dela nada ficou no olhar triste dos homens,
Nem a lembrança de seu vulto incerto...
Passou uma só vez em toda a vida !
Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade !
E esse vôo,
Que nunca mais voltou no mesmo céu deserto,
Nem ao menos deixou a sombra dentro d`água...


Raul de Leoni

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

'À VONTADE'


Não seja por isto, noite.
Melhor é que desças com toda a tua treva.
As portas se fecharam, ninguém rompe os cadeados,
ninguém estende a chave, e tudo é isolamento.
Mas talvez a ferrugem tenha inutilizado todas as chaves
ou as fechaduras, como se diz habitualmente, se zangaram.


Não seja por isto, todavia.
Melhor é que desças,
imensa ave cega sobre os cegos telhados.
Que agora eu converso moveis hirtos nas salas desertas.
E ouço um canto de pássaro empalhado.
Que agora, se alguém chegasse,
me ouviria dizer nitidamente: “Natanael, o tresloucado.”
E Natanael não está presente, é apenas mais um morto num mundo todo de mortos.


Não seja por isto, noite.
O tempo se esfuma.
As cortinas se agitam
ao vento de outras noites.
Especialmente ao vento de outras noites de noivado.
De núpcias.
Não desta, que é como um corredor que não leva a nenhuma porta,
e dentro do qual nos entrechocamos perplexos e desfigurados.
Não desta que nos acicata e magoa com o seu frio que positivamente não é
daqueles que os vivos toleram,
que emerge de trevas ainda mais densas e crispadas.
Mas não seja por isto, noite.
Se até com os mortos é possível encontrar uma razão qualquer de entendimento,
pelo menos a discreta cumplicidade do silencio,
também contigo que te rompes e te destróis como a polpa de um fruto que apodrece,
também contigo que és como uma velha paralitica de xale negro e vestes esgarçadas,
que te quedas contemplando não se sabe que outra
e espectral cidade.



Não seja por isto, noite.
Melhor é que desças. Com toda a tua treva.
E entre nós – embora ressabiados e feridos – até que poderás ficar à vontade.


Pois de qualquer modo há em ti um frêmito de vôo informulado,
grande ave de asas cegas...


Somos teus, como sabes, todos te pertencemos, constrangidos embora.
Mas não seja por isto.
A casa é tua – como nestes domínios é habito dizer aos amigos –
e poderás ficar à vontade.



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

‘Interrogação’


Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite.

Emílio Moura
de Itinerário Poético

'INFÂNCIA'


Eu fui meu
como o espaço
era do pássaro.

Eu me soltava
em cantos e plumas
pelos campos da manhã.

Eu brincava comigo:
eu era eu
e o meu amigo.

Eu me falava baixo
para não espantar
o meu silêncio.

Eu era pequeno
e imenso.


Wilson Pereira
(Minas Gerais 1.949)

Poema de Raul de Leoni


Ao menos uma vez em toda a vida
A Verdade passou pela alma de cada homem...
Passou muito alto, muito vaga, muito longe,
Como os fantasmas, que mal chegam, somem,
Passou em sombra, num vôo refletida
No espelho da água trêmula de um rio...

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade !
Passou uma só vez em toda a vida
E sempre dessa vez a alma dos homens
Estava distraída,
E não reconheceu na sombra desse vôo
A ave ideal que planava no alto azul...
Quando volveu os olhos para a altura
Ela já ia desaparecendo...

Dela nada ficou no olhar triste dos homens,
Nem a lembrança de seu vulto incerto...
Passou uma só vez em toda a vida !
Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade !
E esse vôo,
Que nunca mais voltou no mesmo céu deserto,
Nem ao menos deixou a sombra dentro d`água...


Raul de Leoni

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

'À VONTADE'


Não seja por isto, noite.
Melhor é que desças com toda a tua treva.
As portas se fecharam, ninguém rompe os cadeados,
ninguém estende a chave, e tudo é isolamento.
Mas talvez a ferrugem tenha inutilizado todas as chaves
ou as fechaduras, como se diz habitualmente, se zangaram.


Não seja por isto, todavia.
Melhor é que desças,
imensa ave cega sobre os cegos telhados.
Que agora eu converso moveis hirtos nas salas desertas.
E ouço um canto de pássaro empalhado.
Que agora, se alguém chegasse,
me ouviria dizer nitidamente: “Natanael, o tresloucado.”
E Natanael não está presente, é apenas mais um morto num mundo todo de mortos.


Não seja por isto, noite.
O tempo se esfuma.
As cortinas se agitam
ao vento de outras noites.
Especialmente ao vento de outras noites de noivado.
De núpcias.
Não desta, que é como um corredor que não leva a nenhuma porta,
e dentro do qual nos entrechocamos perplexos e desfigurados.
Não desta que nos acicata e magoa com o seu frio que positivamente não é
daqueles que os vivos toleram,
que emerge de trevas ainda mais densas e crispadas.
Mas não seja por isto, noite.
Se até com os mortos é possível encontrar uma razão qualquer de entendimento,
pelo menos a discreta cumplicidade do silencio,
também contigo que te rompes e te destróis como a polpa de um fruto que apodrece,
também contigo que és como uma velha paralitica de xale negro e vestes esgarçadas,
que te quedas contemplando não se sabe que outra
e espectral cidade.



Não seja por isto, noite.
Melhor é que desças. Com toda a tua treva.
E entre nós – embora ressabiados e feridos – até que poderás ficar à vontade.


Pois de qualquer modo há em ti um frêmito de vôo informulado,
grande ave de asas cegas...


Somos teus, como sabes, todos te pertencemos, constrangidos embora.
Mas não seja por isto.
A casa é tua – como nestes domínios é habito dizer aos amigos –
e poderás ficar à vontade.



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece