Seja bem-vindo. Hoje é

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Névoas

À frente a lua, atrás os sonhos,
qual a distância a percorrer?
Não a suspeitam nossos olhos:
a bruma sobe das estradas
e desorienta homens e bússolas.

Mesmo que voássemos bem alto,
e os céus se abrissem para nós,
nem mesmo assim divisaríamos
os frutos rubros que buscamos
pelos pomares das estrelas.

Como condores, fronte a pino,
cortando os ares meio tontos,
em vez de dar com o rumo certo
cairíamos na terra cega,
ruiríamos no mar opaco.

Este é o castigo que nos deram:
imaginar com vista ousada,
porém achar grossas neblinas
fechando o mundo que buscamos
por tê-lo visto em pensamento.

E assim deixamos para trás
os sonhos, deuses compassivos:
sem os podermos contemplar
olhamos como um branco enigma
- nevoentos, zonzos os caminhos –

somente a lua à nossa frente.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

E as vidas nelas estão


Tempo passa pela catraca
sonoridade dilacerada
equívocos planando
em jovens nuvens carregadas.

Lágrimas contidas mapeando
alegres imagens
vento sul na cela da oração
voa no globo mortal.

Uníssono rompido no etéreo mudo,
abotoando as violetas prematuras.

Nenhuma palavra veste a essência do sentimento.

Azul do véu
descortina
lábios de anil.

Espaço acenando ao vago instante
em paginas gaivotas
cores internas florescem
despertando a aurora orvalhada.

Utopia dos gestos incertos
abraçando um adágio forte.
Partitura
notas de saudades.

Presságios e calafrios
vazios e arrepios
interrogação
põe fim flor âmbar do cais.

Crepúsculo
crava os dentes
boca trava os giros,
gozos em déjá vu,
sorriso na moldura
sonho vivo consome a mente.

Foge o desespero
pela lateral da estação universal,
vãos distantes
paisagem descansa
por um olhar fundo marcado
presença ausente intacta natural.

Floresta estuprada chora.

Deságua
clamor suave de magoas
por falta de um toque, expressivo
perfume sol sentido aquece.


Aharon

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Como estão as montanhas


Como estão as montanhas
por detrás do horizonte,
e o litoral do sonho
além da nossa fronte;


como, no oceano denso,
anêmona perfeita
sua estrela desdobra
e o cego abismo aceita;


como, atrás das imagens,
a idéia se desenha,
e o oráculo cintila
na impenetrável brenha;


assim fica encerrrada,
assim, desconhecida,
nossa extrema verdade
na noite irreal da vida.


Cecília Meireles
In: Canções (1956)

Cecília Meireles nascimento 07/11/1901 - morte 09/11/1964

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

BEM-AVENTURANÇA


Graças, por todo pão e mistério
pela palavra soerguida
pela poesia
pela vida sobre a vida.

(Fernando Campanella)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

(Fotografia do poeta mineiro Fernando Campanella)


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Névoas

À frente a lua, atrás os sonhos,
qual a distância a percorrer?
Não a suspeitam nossos olhos:
a bruma sobe das estradas
e desorienta homens e bússolas.

Mesmo que voássemos bem alto,
e os céus se abrissem para nós,
nem mesmo assim divisaríamos
os frutos rubros que buscamos
pelos pomares das estrelas.

Como condores, fronte a pino,
cortando os ares meio tontos,
em vez de dar com o rumo certo
cairíamos na terra cega,
ruiríamos no mar opaco.

Este é o castigo que nos deram:
imaginar com vista ousada,
porém achar grossas neblinas
fechando o mundo que buscamos
por tê-lo visto em pensamento.

E assim deixamos para trás
os sonhos, deuses compassivos:
sem os podermos contemplar
olhamos como um branco enigma
- nevoentos, zonzos os caminhos –

somente a lua à nossa frente.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

E as vidas nelas estão


Tempo passa pela catraca
sonoridade dilacerada
equívocos planando
em jovens nuvens carregadas.

Lágrimas contidas mapeando
alegres imagens
vento sul na cela da oração
voa no globo mortal.

Uníssono rompido no etéreo mudo,
abotoando as violetas prematuras.

Nenhuma palavra veste a essência do sentimento.

Azul do véu
descortina
lábios de anil.

Espaço acenando ao vago instante
em paginas gaivotas
cores internas florescem
despertando a aurora orvalhada.

Utopia dos gestos incertos
abraçando um adágio forte.
Partitura
notas de saudades.

Presságios e calafrios
vazios e arrepios
interrogação
põe fim flor âmbar do cais.

Crepúsculo
crava os dentes
boca trava os giros,
gozos em déjá vu,
sorriso na moldura
sonho vivo consome a mente.

Foge o desespero
pela lateral da estação universal,
vãos distantes
paisagem descansa
por um olhar fundo marcado
presença ausente intacta natural.

Floresta estuprada chora.

Deságua
clamor suave de magoas
por falta de um toque, expressivo
perfume sol sentido aquece.


Aharon

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Como estão as montanhas


Como estão as montanhas
por detrás do horizonte,
e o litoral do sonho
além da nossa fronte;


como, no oceano denso,
anêmona perfeita
sua estrela desdobra
e o cego abismo aceita;


como, atrás das imagens,
a idéia se desenha,
e o oráculo cintila
na impenetrável brenha;


assim fica encerrrada,
assim, desconhecida,
nossa extrema verdade
na noite irreal da vida.


Cecília Meireles
In: Canções (1956)

Cecília Meireles nascimento 07/11/1901 - morte 09/11/1964

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

BEM-AVENTURANÇA


Graças, por todo pão e mistério
pela palavra soerguida
pela poesia
pela vida sobre a vida.

(Fernando Campanella)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A MÁQUINA DO MUNDO

(Fotografia do poeta mineiro Fernando Campanella)


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade