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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Um poema de Gastão Neves:


Meu relógio se aliena,
cumpre apenas o andamento.
Eu cumpro da vida a pena
de criar meu movimento.

Quem espera sempre alcança,
eu não espero nem vou,
- há muito renego a herança
de ser o que já não sou.

[Gastão Neves]

''Silêncio'' (trecho)



(…) Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar?

É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve.

(Clarice Lispector)

Excerto de 'A descoberta do mundo: crônicas'

"Primavera"


Primavera Ah! quem nos dera que isto, como outrora,
Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera
Que inda juntos pudéssemos agora
Ver o desabrochar da primavera!

Saíamos com os pássaros e a aurora.
E, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
Sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"

E esse corpo de rosa recendia,
E aos meus beijos de fogo palpitava,
Alquebrado de amor e de cansaço.

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera... E eu te levava,
Primavera de carne, pelo braço!

Olavo Bilac,
in "Poesias"


[Tela de  Alexander Averin]

''O ETERNO AUSENTE''


A hora de partir foi tão inesperada!
Fechaste mansamente as portas da morada
E partiste.

Numa orgia floral, chegava a primavera,
Enchendo todo o céu de risadas de luz.

Por certo, o seu rumor feriu tua alma triste
Cerraste mansamente as portas da morada
E partiste.

Helena Kolody
de Musica Submersa 


[Tela de Eugène-Henri Cauchois]

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

"Telas vivas"

 
Emoções são como tintas
em telas distintas
coloridas ou não,
imaginadas na mente,
em forças cadentes
impressas no coração.

Warllem Silva
In: Infinitude da Graça

"O verbo - a luz - o dia"


"Primeiro o espanto
seguido do pranto
num profundo vazio.

Preenchido por lágrimas,
sorrisos, dor e agonia!

Hoje alegria-aconchego
o verbo - a luz - o dia!"

Warllem Silva
In: 'Infinitude da Graça'


 [Tela de Alexander Averin]

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

''POEMA ESCRITO NO CHÃO''


Nos reveses desta vida
o amor não sofre senão
quando a alma é ferida
nos espinhos da paixão.

A desculpa concedida
no revés da ingratidão
arrefece a dor sofrida
no perfume do perdão.

Vê o vôo nas planuras
do orgulho nas alturas
que inebria o coração...

Deus que deu à alma das rosas o luzir das cores
também deu por abundância o perfume às flores
que rastejam pelo chão...


Afonso Estebanez

‘AVE’


ave
incrustada no espaço
ponto azul

isolada

(pedra
em parábola
no poema
espaço-tempo)

projeta
a fuga
no ângulo
de um voo

crê

demasiado em seu
escudo plumagem

ignora

quem seja
esboço apenas


Ricardo Augusto dos Anjos
De ‘Após a tragédia’
Editora Engra- 1962-

‘Poema’

ancorado está meu coração
nesta praia silenciosa onde
meus olhos de espanto como os peixes
espreitam a aurora de vidro que
deverá conduzir-me a transparência,
ao multicor. serei duende de cristal
integrado no que é mágico tentarei
o voo exato das aves idealizadas num tempo
anterior a aurora de vidro que resolvo
anterior ao pranto de onde procedo

Ricardo Augusto dos Anjos
De ‘Após a tragédia’
Editora Engra- 1962-

domingo, 8 de setembro de 2013

NÃO ERA ISSO




Não.
Não era isso.

O que eu queria dizer
era tão alto
e tão longe 
que nem conseguiu soletrar
suas palavras-estrelas.


Helena Kolody
In: Poemas do Amor Impossível







PALAVRAS




Aluviões de palavras
corroem as cordilheiras.
Densas nuvens de palavras
limitam os horizontes.
Os batalhões de palavras
concentram as agressões.
Há loucura de palavras
a brotar por entre as pedras
de inumeráveis caminhos.

Ao passarem as palavras,
brilhará, límpido e eterno,
o Verbo esquecido. 


Helena Kolody
In: Sinfonia da vida 

A MIRAGEM NO CAMINHO



Perdeu-se em nada,
caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.

(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho).

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho




LOUCURA LÚCIDA



Pairo, de súbito,
noutra dimensão

Alucina-me a poesia,
loucura lúcida.

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

INFINITO PRESENTE



Estou sempre em viagem.
O mundo é a paisagem
que me atinge de passagem

Helena Kolody,
in Viagem Submersa



NUNCA E SEMPRE



Sempre cheguei tarde
ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.

Nunca floresceram
em minha primavera
as rosas que sonhei colher..

Mas sempre os passarinhos
cantaram e fizeram ninhos
pelos beirais
do meu viver.


Helena Kolody
in Sinfonia da vida 




O SENTIDO SECRETO DA VIDA



Há um sentido profundo
Na superficialidade das coisas,
Uma ordem inalterável
No caos aparente dos mundos.

Vibra um trabalho silencioso e incessante
Dentro da imobilidade das plantas:
No crescer das raízes,
No desabrochar das flores,
No sazonar das frutas.

Há um aperfeiçoamento invisível
Dentro do silêncio de nosso Eu:
Nos sentimentos que florescem,
Nas idéias que voam,
Nas mágoas que sangram.

Uma folha morta
Não cai inutilmente.
A lágrima não rola em vão.
Uma invisível mão misericordiosa
Suaviza a queda da folha,
Enxuga o pranto da face.

Helena Kolody
in Correnteza

IDENTIFICAÇÃO



Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a mudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei na seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n’alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.


Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais glorioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.


Helena Kolody,
in Paisagem Interior 





PEDIDO



Enche de silêncio a minha taça.
Unge-me de esquecimento.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho


RESSONÂNCIA



Deixa-me ser a gruta à beira-mar,
Longamente a ressoar de Teu rumor eterno.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho

VIAGEM



Era um pássaro triste.
Andorinha exaurida,
A viajar para longe.
Em suas asas tremia
Um prenúncio de morte.
A árvore acenou da distância
Um fraterno chamado.
Repousou a andorinha
E sonhou longamente,
Acordada.
E foi, aquele sonho, a vida.

Helena Kolody,
In luz Infinita

TRISTEZA DAS MÃOS



Choram em silêncio a dor de envelhecer.

Foram um dia a graça inocente
De um berço num lar.

Pálidas mãos, sulcadas de renúncias!

Foram jovens e belas,
Confiantes em si mesmas, todo-poderosas.

Tímidas mãos que se apagam na sombra!

Mãos feitas de luz, intrépidas e leais,
Solícitas e compreensivas,
Ternas mãos maternais.

Velhas mãos solitárias,
Como dói recordar!


Helena Kolody,
de Correnteza

TRANSFIGURAÇÃO



Numa luz verde, velada,
contra o céu de opala e nácar,
os arranha-céus,
ao anoitecer,
são estalagmites
em gruta de bruma,
onde gotejam estrelas.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho


SIGNIFICADO



No poema
e nas nuvens,
cada qual descobre
o que deseja ver.

Helena Kolody
in Poesia Mínima 

SALDO



Na pagina adolescente
deste mundo em flor,
sou um saldo anterior.

Helena Kolody
in Poesia Mínima

SINFONIA DA VIDA



Seu livro de estréia, Paisagem interior, publicado em 1941,
 contém 45 poemas, três dos quais são haicais.
Alguns dos poemas deste primeiro livro foram depois
 retrabalhados por Helena, conforme pode-se ver em edições
 posteriores reunindo suas obras. O seguinte depoimento,
 transcrito na antologia Sinfonia da Vida (1997),
 é significativo:

Antigamente, eu me derramava em palavras. Um dia,
 o Dr. Andrade Muricy, um paranaense que era crítico de
 arte no Rio de Janeiro, aconselhou-me: “Você vai muito
 melhor no poema curto. Você quer encompridar e, 
às vezes, dilui o poema ou se repete. Você tem talento
 para a síntese”. Daí em diante, comecei a cortar os
 excedentes, deixando só o sumo, o essencial.

TRISTEZA DAS MÃOS


Capa da primeira edição de ‘Correnteza’ 1.977

Choram em silêncio a dor de envelhecer.

Foram um dia a graça inocente
De um berço num lar.

Pálidas mãos, sulcadas de renúncias!

Foram jovens e belas,
Confiantes em si mesmas, todo-poderosas.

Tímidas mãos que se apagam na sombra!

Mãos feitas de luz, intrépidas e leais,
Solícitas e compreensivas,
Ternas mãos maternais.

Velhas mãos solitárias,
Como dói recordar!


Helena Kolody

A SOMBRA DO RIO


Capa da primeira edição de 'A sombra no Rio' - 1.951-

ANTOLOGIA POÉTICA


Capa da Primeira Edição de Antologia Poética- 1.967

CANÇÃO DE NINAR


(Capa da 1ª edição do livro.)

(para uma criança da favela) 

Criança, és fio d'água 
Triste desde a fonte. 
Humilde plantinha 
Nascido em monturo: 
Quanta ausência mora 
Nesse olhar escuro!

Recosta a cabeça 
Na minha cantiga
Deixa que te envolva,
Que te beije e embale. 

Helena Kolody 
Do livro: "Vida breve" [1964],

APELIDOS



Eram Jucas e Chiquinhos, 
Ninas, Lolas, Mariquitas. 
Apelidos que o amor 
seleva nas criaturas. 

Hoje são números. 
(Computadores não programam ternura) 

Helena Kolody 

Do livro: "Ontem agora", Secretaria de
 Estado de Cultura do Paraná, 1991, PR
 

OBRAS DE HELENA KOLODY



Obras 

1. Paisagem interior. edição da autora, 1941.
2. Música submersa, edição da autora, 1945.
3. A sombra do rio, edição da autora, 1951.
4. Triologia, separata de Um século de poesia.
 Curitiba. Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1959.
5. Poesias completas. Curitiba: edição de homenagem 
a cargo de alunos, 1962.
6. Vida breve, edição da autrora, 1964.
7. 20 poemas, reunião e edição da autora, 1965.
8. Era espacial e Trilha sonora, edição da autora, 1966.
9. Antologia poética, organiza e editada pela autora, 1967.
10. Tempo, edição da autora, 1970.
11. Correnteza, edição da autora, 1977.
12. Infinito Presente, edição da autrora, 1980.
13. Poesias escolhidas. Curitiba: Sociedade dos
 Amigos da Cultura Ucraíana. Tradução de Wira Wowk
 para o ucraniano, 1983.
14. Sempre palavra. Curitiba: Criar Edições, 1985.
15. Poesia mínima. Curitiba: Criar Edições. 1986.
16. Viagem no espelho: reunião. Curitiba: Criar 
Edições, 1988.
17. Ontem, agora. Curitiba: Secretaria do Estado de
 Cultura, 1991.
18. Reika, Curitb: Fundação Cultural de Curitiba, 1994.
 Série Buquinista. 19. Antoloia poética. Curitba: 
Livrarias Curitiba, 1994.
20. Viagem no espelho, 2ª edição. Curitiba: Editora da
 UFPR, 1995.
21. Caixinha de música. Curitiba: Secretaria do Estado 
da Cultura, 1996.
22. Luz infinita. Curitiba: Museu Biblioteca Ucraniana
 em Curitiba. Tradução de Ghryghory Kotchur e Wira 
Selanski para o ucraniano. Edição bilíngüe.


Texto retirado do Livro "Helena Kolody - Sinfonia da
 vida; Organização: Tereza Hatue de Rezende. 
Coleção Antologia poética. D.E.L. Editora/Letraviva,
 Pólo Editorial do Parná "A transformaçaõ que a gente lê.
 - 1997, pág. 

AUTO-BIOGRAFIA



Nasci no dia 12 de outubro de 1912, no núcleo colonial de Cruz 
Machado, em pleno sertão paranaense. Eram 8 horas da manhã de
 um dia de sol e geada. 

Meus pais eram ucranianos, que se conheceram a casaram no Paraná.
 Eu sou a primogênita e a 1ª brasileira de minha família. 

Miguel Kolody, meu pai, nasceu na parte da Ucrânia chamada
 Galícia Orienta, em 1881. Tendo perdido o pai na grande 
epidemia de cólera que assoloua Ucrânia em 1893, Miguel,
 no ano seguinte, emigrou para o Brasil com a mãe e os irmãos. 

Mamãe, cujo nome de solteira era Victoria Szandrowska, também
 nasceu na Galícia Oriental, em 1892. Veio para o Brasil em 1911. 

Vovô radicou-se em Cruz Machado, onde papai trabalhava. "Seu" 
Miguel conheceu a jovem Victoria e apaixounou-se por ela. 
Casaram-se em Janeiro de 1912. Estava escrito o primeiro 
capítulo da minha história. 

Texto retirado do Livro "Helena Kolody - Sinfonia da vida; 
Organização: Tereza Hatue de Rezende. Coleção Antologia 
poética. D.E.L. Editora/Letraviva, Pólo Editorial do Parná
 "A transformaçaõ que a gente lê. - 1997, pág. 11. 

BIOGRAFIA DE HELENA KOLODY



Nascimento-Cruz Machado,PR- 12 de outubro de 1912 — 
Morte-Curitiba, 15 de fevereiro de 2004


Em 12 de outubro de 1912, Helena nasceu, filha de Miguel
 e Vitória Kolody, imigrantes ucranianos, em Cruz Machado,
 Paraná. É a primeira brasileira da família. Passou a 
infância no cenário catarinense de uma pequena vila :Três
 Barras. Com 16 anos teve a primeira publicação de um poema 
seu, “A lágrima”, na revista O Garoto, editada por 
estudantes. Trabalhou por 23 anos no Instituto de Educação. 

“Desde pequena eu amei as palavras. Quem me alfabetizou foi
 minha tia de Rio Negro, professora do primeiro ano primário.
 Eu nunca esqueço a primeira cartilha que tive em mãos,
 cheia de figuras. Amei tanto aquele livro que nunca mais
 parei de ler. As escolas emprestavam livros de sábado para
 segunda e, assim, eu passava os finais de semana lendo e 
lendo.”


Helena apreciava, desde pequena, a leitura de livros,
 revistas, textos que lhe caíssem à mão. “Passava os finais
 de semana lendo. Umas coleções, como “As grandes lendas da
 humanidade “ eram minha delícia naquela época , tudo com o
 elemento maravilhoso , mágico“. Assim , Helena Kolody 
permeou sua produção poética com a crença no homem e em 
suas possibilidades desde que aliada à religiosidade. A
 análise intimista – alma solitária , silêncio , apego a 
bens espirituais , carência amorosa – constitui em traço
 forte de seu trabalho. "Quando criança, eu já gostava
 de  poesias e as cantava como se fossem hinos da escola."
 Ela lembra ainda de amores platônicos na adolescência, que
 lhe inspiraram algumas poesias em que aparece uma
 resignação altiva. "Não acreditava que me amavam. Eu era
 meio gordinha..." Helena não apreciava o progresso e este
 fato fez com que o leitor observasse poemas amargurados,
 melancólicos associados a um fio de esperança no dia de 
amanhã. Com circularidade, ela produziu textos poéticos
 que se avultavam em antíteses ou mesmo abstrações e 
humildade. 

Ocupou a cadeira número 28 da Academia Paranaense de Letras. 

Em 14 de fevereiro de 2004, Helena se despede do mundo que
 tão bem a recebeu e que tantas informações recebeu dela.
 Uma perda que pode ser preenchida pela divulgação de
 seus poemas – eternos versos de vida. 














sexta-feira, 6 de setembro de 2013

POEMAS DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Criação



O verbo nunca esteve no início
dos grandes acontecimentos.
No início estamos nós, sujeitos
sem predicados,
tímidos,
embaraçados,
às voltas com mil pequenos problemas
de delicadezas,
de tentativas e recuos,
neste jogo que se improvisa à sombra
do bem e do mal.


No início estão as reticências,
este-querer-não-querendo,
os meios-tons,
a meia-luz,
os interditos
e as grandes hesitações
que se iluminam
e se apagam de repente.


No início não há memória nem sentença,
apenas um jeito do coração
enunciar que uma flor vai-se abrindo
como um dia de festa, ou de verão.


No início ou no fim (tudo é finício)
a gente se lembra de que está mesmo com Deus
à espera de um grande acontecimento,
mas nunca se dá conta de que é preciso
ir roendo,
roendo,
roendo
um osso duro de roer.


Gilberto Mendonça Teles,
in Álibis



História


Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.


Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.


Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.


Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.


Gilberto Mendonça Teles



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não.


Gilberto Mendonça Teles





DECLINAÇÃO



O mar não me levou:
o meus cuidados
(o que era ruim /o que era bom demais)
ficaram por aí, pelos cerrados,
à sombra dos paus-terras de Goiás. 

O mar não me lavou:
meu corpo todo
tem as marcas da terra – o sol, o chão,
os cheiros doces dos quintais, do lodo,
e a febre do meu T nesta sezão. 

Eu sou quem sou. Não me mudei. Mudou-me
uma parte da vida, mas foi sem:
não me levou nem me lavou,
livrou-me
da danação de todo mal, amém. 

(Se houver louvor aqui, se alguma luva,
qualquer pessoa a pode usar por mim:
a minha história é como um guarda-chuva
que a gente esquece,
quando chega ao fim.)


Gilberto Mendonça Teles



ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem. 

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 


Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO


Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles




ANÚNCIO 



Troco urgentemente uma secretária 
eletrônica, 22ov, bastante conservada 
(motivo mudança de amor e domicílio), 
por uma secretária invisível, 
dessas que fazem desaparecer 
tudo de repente: 
colóquio de alquimistas 
congressos de bruxas 
reuniões de catedráticos 
e até o I simpósio 
de mulheres jubilosas. 

Que seja loirena e diligente, 
que seja meiga, sobretudo quando visível. 
Que não se esqueça dos pequenos aniversários 
(uma semana disso, um mês daquilo) 
e os saiba comemorar condignamente 
nalgum lugar secreto: 
ilha ou limbo 
beira de mar 
quarto de hotel 
fumaça de cachimbo. 
Que seja também multilíngüe 
para entender-me em todos os sentidos. 
E que não perca nunca o seu charme 
para me seduzir ou raptar-me 
nas horas mais incríveis de solidão. 

(Cartas para esta redação.) 

Gilberto Mendonça Teles





Preciso urgentemente encontrar 
minha secretária invisível 
que se perdeu sexta-feira 
em reuniões e telefonemas 
e me deixou a ver navios. 

Melhor: um submarino atômico 
que entrou pelo rio e bombardeou 
toda a cidade, virando-a 
pelo avesso, como um absurdo 
e até remoto cataclismo. 

(Gratifica-se bem quem der notícia 
a esta redação. Ou à polícia.) 

Gilberto Mendonça Teles




ORIGEM

Agarro o azul do poema pelo fio
mais delgado da lã de seu discurso 
e vou trançando as linhas do relâm-
pago no vidro opaco da janela. 

Seu novelo de nuvens reduplica 
a concreta visão desse animal 
que se enreda em si mesmo, toureando 
a púrpura do mito e se exibindo
diante da minha astúcia de momento. 

Sou cheio de improviso. Sou portátil. 
E sou noite e falácia. Sou impulso
e excesso de acidentes. Sou prodígios.
E agora que há sinais de ressonância 
sou milícia verbal configurando 
a subversão na zona do silêncio. 
.......................
Todo início é noturno. Todo início
é maior que seu tempo e sua agenda 
de imprevistos. Mas todo início aguarda 
a visita dos deuses e demônios.

Há fórmulas polidas nos subúrbios 
da fala. Há densidades nos recintos 
desprovidos de margens. E nos mínimos
detalhes de ruptura existe um sopro
de solidão que soa nesta vértebra 
de audácia e persistência. 
...........................................Alguém pertuba 
o horário de recreio das palavras. 

Gilberto Mendonça Teles
In 'Arte de armar' (1977)


CONVITE

Vem comigo para dentro 
da palavra multidão:
de mãos dadas somos vento,
somos chuva de trovão.

Se uma andorinha sozinha
não pode fazer verão, 
vem comigo mais ainda 
para dentro da expressão. 

Cada letra tem seu ninho 
de palavras no porão:
vem tirá-las de seu limbo, 
vem fazer tua oração. 

Dentro de cada palavra,
no seu timbre e elocução, 
saberás de peixe, cabra, 
de liberdade e quinhão. 

E até na palavra nova, 
bliro, ilhaval e zirlão 
alguma coisa se dobra, 
tem sentido a sedução. 

Pega portanto uma letra, 
pega a palavra invenção
e transforma em borboleta 
um risco arisco no chão.

É no centro da linguagem,
no seu silêncio e pressão, 
que se dedilha uma casa, 
que se desenha a canção. 

Gilberto Mendonça Teles
In (Álibis) 2000.



Etnologia


Ainda 

há índios.

Gilberto Mendonça Teles



Nos Últimos 20 anos

Nos últimos vinte anos, muitas coisas
tiveram seu princípio –

.................Uma lagarta
começou a comer o talo verde
de uma folha esculpida na parede
do edifício mais próximo.

................Uma aranha
teceu e desteceu a sua renda
à espera da odisséia de um inseto
curioso.

................Um beija-flor impaciente
começou a amolar o longo bico
no metal do verão.

................Recém-nascido,
um menino berrava o beabá
mijando indiferente na linguagem.
Entre greves, censura e terrorismo,
um relâmpago veio da internet,
riscou no movimento o próprio site
e se perdeu na pós-modernidade
do milênio.

................Enquanto isso, o amor abria
seus e-mails (sem vírus), a sua flor
de signos, suas formas, a sua arte
de escandir as vogais, tanger os ictos,
as consonâncias e, sílaba a sílaba,
plantar no íntimo do homem o desejo
mais fundo da poesia.

Gilberto Mendonça Teles



DILEMA

Tenho o sangue da gente aventureira
e o amor à terra que me deu o sonho.
Mas me encontro parado na fronteira,
sem saber se recuo, ou se a transponho.
Aprisionado pelo ideal que sonho
na solidão da praia derradeira,
risco na areia o poema que suponho
ficará na memória a vida inteira.

O gosto de lutar contra o imprevisto
fez-me todo de vento e não resisto
ao desespero bom de ir mais além.
Estendo os olhos para o mar, e penso:
"- Tenho chumbo nos pés e o mar e imenso:
só me resta sonhar como um refém." 


Gilberto Mendonça Teles



MELODIAS

Ternas melodias de longínquas plagas,
ns manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.

Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas erras vindes me encantar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?

Ou vindes dos astros – de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos,
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.

Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha:
São as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha.

Essas melodias que a minh´alma douram,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.


Gilberto Mendonça Teles



O OUTRO

Já não serei eu mesmo, serei outro
quando me virem segurando as horas
e desenhando pássaros barrocos
nas pétalas das conchas e das rosas.

Se, deslumbrado pela luz da autora,
eu caminhar sem rumo, como um louco,
sabei que levo estrelas na memória
e me contemplo velho, sendo moço.

Diante dos homens gritarei comícios
e arrastarei por onde for o bando
que me seguir os passos indecisos.

E quando a noite vier rolando o medo,
eu dormirei nas pedras como um santo
e sonharei nas ruas como um bêbado. 


Gilberto Mendonça Teles







SONETO XXII


Não morrerás em mim. Não morrerás
assim como uma sombra na distância,
o vento no horizonte e, nas manhãs,
a alegria mais pura que inventamos.
Serás presente em tudo e viverás
o segredo de todos os momentos.
Todas as coisas gritarão teu nome
e o silêncio mais puro, o mais sutil,
aquele que mais dói e acende as noites
e o ser profundamente intranqüiliza
este restituirá o movimento,
a eternidade viva de teus passos
e a certeza mais limpa de que nunca
tu morrerás em mim.
Não morrerás.


Gilberto Mendonça Teles
de Sonetos do azul sem tempo






ROSÁRIO

Para Mary

Em pleno sol de outono, em pleno maio, abrindo
a alma para os cristais dos dias mais risonhos,
vou desfiando ao léu, pelo horizonte infindo,
meu rosário de sonhos.

Vou desfiando, assim, meu rosário de contas
esplêndidas, azuis, de rósea cor tocadas
e que são como orvalho a oscilar-se nas pontas
das folhas pelo sol do estio marchetadas.

Hei de rezá-las todas.
Passá-las, de uma a uma, em cânticos de hinário,
que os dias deste mês de noivados, de bodas,
serão contas de luz na cruz do meu rosário.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


ACALANTO


Fecho meus olhos para o teu canto
e ouço a cantiga vibrando no ar:
asas de vento, sons de acalanto,
a luz do dia no próprio encanto
que o sol da vida te faz cantar.

Fecha teus olhos para o meu canto
e ouve o marulho longe de um mar,
lançando à praia do desencanto
todo o meu sonho desfeito em pranto
que o sal da vida me faz chorar.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos



CANÇÃO


As horas dançam no tempo
e o tempo, na madrugada.

Do cimo da vida, apenas
vejo a poeira na estrada.

Meus rastros viraram pedras
na terra do antigamente.

E as horas morrem no tempo
como o tempo, no poente.


Gilberto Mendonça Teles
Planície “in” Hora Aberta



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não. 

Gilberto Mendonça Teles



Meus Outros Anos


Eu me lembro, eu me lembro, Casimiro,
no meu São João, no meu Goiás, na aurora
da minha vida, eu li o teu suspiro,
li teus versos de amor que leio agora.

E que meu filho lê, e todo mundo
sabe de cor, de coração, de ouvido,
desde que sinta o apelo mais profundo
de tudo que tem força e tem sentido.

Contigo comecei a ver e vi
as coisas mais comuns - o natural:
o rio, a bananeira, a juriti
e a tarde que cismava no quintal.

Contigo descobri a travessia
do tempo na manhã, no amor, no medo,
nos olhares da prima que sabia
a dimensão maior do meu brinquedo.

E até este confuso sentimento,
esta idéia de pátria, que persiste,
veio de teus poemas, no momento
em que tudo era belo e apenas triste

era pensar no exílio e ver no termo
um motivo de doença e de pecado;
triste era imaginar o poeta enfermo,
tossindo os seus silêncios no passado.

Eu me lembro, eu me lembro! e quis de perto
ver o teu rio, teu São João, teu lar;
ler a poesia desse céu aberto
que continuas a escrever no mar.

Gilberto Mendonça Teles


ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem.

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 

Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO



Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles


Geração

Sou um poeta só, sem geração,
que chegou tarde à gare modernista
e entrou num trem qualquer na contramão,
e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela,
me trata como a um filho natural.
Eu chego às vezes tímido à janela
mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda
é que me vê brincando de arlequim.
Às vezes fujo à rima e lavo um fardo
de roupas sujas, não tão sujo assim..

A de sessenta e um foi de proveta,
foi mágica de circo para um só.
Ninguém me viu caçando borboleta
ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque
que se fez marginal pela cidade,
será que fez poesia ou fez xerox
ou apenas tropicou na liberdade.

Gilberto Mendonça Teles
de Hora Aberta


À Linha da Vida


A que, visível, se interrompe
na palma da máo, decisiva:
a ultrapassagem do horizonte
pelo lado avesso da escrita.


À Linha do Universo


A que, invisível, se deleita
no olho sensual da fechadura:
a letra (aleph) e seu pentelho
no espaço-tempo que se enruga.

E, anjo ou demônio, pinta o sete
mas tão relativo e medroso
que o tom azul logo se perde
na linha de fundo do esboço.


À Linha-d’água


Visível enquanto invisível,
compõe seu ritmo avergoado:
a imagem se imprime no nível
do que está deste e do outro lado.

Por sob a carga o sonho e o medo
de haver perdido e haver ganhado:
no contrabando do segredo
o contrapeso do sagrado.

E o que ficou quase perdido
(o que me deixa envergonhado)
ainda viaja sem sentido,
meio à deriva,
xxxxxxxxxxxe bem calado.


Rio, 1986.

Gilberto Mendonça Teles


Locus Amoenus


Sou homem do mato e meio bugre:
falo pouco e penso enviesado,
usando sempre expressões populares.
E, por gostar de fazer arte,
ando morto de amor,
mas vivinho da sílvia.

Às vezes sou até meio exibido:
mato a cobra e mostro logo o pau,
enquanto os deuses brincam
no lugar mais ameno da floresta.

Daí talvez o meu gosto e inclinação
pelas coisas mais simples:
cheiro de flor, resina, zigue-
zague de borboleta e barulhinho
de folha seca nos trilheiros,
além do indispensável gole de cachaça
que faz muito bem depois do poema.

O que não se explica é este jeito de sombra,
este balanço do corpo nos atalhos
e este sestro de chupar a ponta da língua
e extrair a polpa de uma fruta
no meio do cerrado.

É daí que aprecio melhor
o pisco repentino de uma estrela.

Gilberto Mendonça Teles


45

A Domingos Carvalho da Silva


Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?


(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)


Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?


Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco


de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão
entre o 4 e o 5.



Gilberto Mendonça Teles





EU TE ESPERO



Eu sempre te esperei.
Eu sempre te esperei em uma nuvem de neve
tão diáfana e sutil, tão vaporosa e leve
e, num halo de luz, vinda de onde não sei,
Eu sempre te esperei.
E eu sei que tu virás.
E eu sei que tu virás num sonho alucinado,
na brancura de paz de um silêncio ondulado
e, suave como um luar de finos tafetás,
eu sei que tu virás.
E nem sei quando vens.
E nem sei quando vens. O tempo é um hiato.
Só o amor é verdade, e tudo o mais, abstrato.
Só o amor é que encerra o supremo dos bens,
e nem sei quando vens.
Mas te espero feliz.
Mas te espero feliz e entre anseios te aguardo.
Hás de chegar um dia e nessa espera eu ardo.
Sempre, por toda a vida (é minha alma que o diz)
Te esperarei feliz.


Gilberto Mendonça Teles
(HORA ABERTA - poemas reunidos - Ed. Vozes, 2003)

DO LIVRO POEMAS REUNIDOS

Madrugada 


Ainda há estrelas no céu, tremelicando, tontas,
e a manhã já vem vindo, indolente e indecisa,
até que o passaredo o concerto organiza
para esperar-te, ó sol, que dos longes despontas.

Um rego d'água corre e um vento brando alisa
as franças do capim ridente,em cujas pontas
o orvalho da manhã esplende como as contas
de explêndido cristal que o sol, beijando , irisa.

As aves cantam numa alegria incontida;
a terra cheia, ri-se o capinzal molhado;
e toda a natureza é um hálito de vida.

E de há muito que está o caboclo de pé,
olhando, preguiçoso, e no sonho abismado,
a fumaça a subir do rancho de sapé.


Gilberto M. Teles
Im Poemas Reunidos



Simplicidade

Tudo é tão simples nesta vida e fica
às vezes tão confuso ou tão bisonho
que a linguagem das coisas se duplica
ante os olhos atônitos de sonho.
E essa simplicidade, clara e rica
de sensações indefiníveis, ponho
no pensamento real que frutifica
na ambiguidade em que me decomponho.
Mas o cenário vai mudando. E a vida 
se lança calma e convenientemente
na foz do tempo. E eu continuo , a esmo,
minha jornada interrompida,
procurando o horizonte inexistente
na planície impossível de mim mesmo.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos

IV

Há na espera um prenúncio de incerteza
sobre a alegria que não sei mais terna.
Tudo me leva a ti, e eu sigo mesmo
tocando estrelas cada vez mais perto.

Não desconheço a exatidão da noite
nem o horizonte que te ausenta sempre.
Um dia acordarei para teu corpo
e só ternura de palavras entre

os teus cabelos te direi, de encanto.
Minha linguagem rútila terá
a eternidade que terei, cantando.

E tudo o mais será como o silêncio
pesando sobre a noite, a noite e o campo,
e o campo que não mais se esquecerá.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


MELODIAS


Ternas melodias de longínquas plagas,
nas manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.

Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas terras vindes me encontrar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?

Ou vindes dos astros - de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.

Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha;
são as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha

Essas melodias que a minh'alma douram ,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.


Gilberto M. Teles
Im Poemas Reunidos



HINO AO SONO


À noite, quando sinto o meu corpo sentindo
a fadiga, o cansaço e o tédio do trabalho,
tu vens, ó sono bom, vens lentamente vindo
enrolar-me na lã do teu fluido agasalho.

E, como uma flor branca embebida de orvalho,
a suave languidez de tua alma se diluindo
cobre todo o meu ser e no teu ser me espalho
como um som que se escuta a ampliar-se, sumindo...

Em ti, como num mar distante, cujas águas
refletissem a dor , as tristezas e as mágoas
de quem de cedo tivesse o desprezo da sorte,

todo o meu ser se abisma, ansioso, e se evapora!
Porque tu és, ó sono, essa essência sonora
tranquilizante a vida poetizando a morte.


Gilberto M.Teles
In Poemas Reunidos


POEMA


De ti me vem esta alegria pura,
singela como o som de flauta rústica,
irradiante como o sol
na manhã rumorosa,
cheia de orvalhos,
cheia de pássaros,
cheia de luz
e da ansiedade imensa
de completar
o amor!

De ti me vem esta alegria silenciosa
e inexplicável de saber que vivo
na cadência feliz da sintonia
universal dos elementos.
De ti me vem
o sussuro das vozes sonorosas
e a linguagem inefável
deste amor.

De ti me vem esta alegria
de ser livre e de estar sozinho te esperando
nalgumas dessas ilhas afastadas,
perdidas no Pacífico do Sonho.


Gilberto M. Teles
In Poemas Reunidos

CANTIGA I

Não quebres o encanto
da palavra vida.
Deixa que a palavra
role assim perdida
como a própria sombra
dessa coisa-vida.

Deixa que seu canto
se prolongue ainda 
sobre os mil segredos
desta tarde linda,
sobre o mar sereno,
sobre a praia infinda.

Há tanto silêncio,
tanta paz na vida
que nem mesmo o tempo
com sua arte erguida
roubará o encanto
da palavravida.

Deixa que a palavra
ande assim perdida...
-Alguém docemente
pensará na vida.

Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


CANTIGA III


Soprei na esquina do vento
a condição do meu canto:
- "Que os homens todos me entendam!"
Mas, como um rio em silêncio,
fui-me no tempo ocultando.

Era preciso, e falei.
Gritei as minhas palavras.
Tinha esperança, e de lei.
E hoje, cansado, nem sei
se alguém, de longe, escutava.

Surpreendo agora na curva
repentina do planalto
a noite que vem na chuva
de uma tristeza tão muda
que nem sei mais o que faço.


Gilberto M. Teles
In Poemas Reunidos


HINO À NOITE

Ó noite, eu te desejo, e anseio o teu abraço
macio como o luar, quieto como o jazigo.
A fadiga me esvai, domina-me o cansaço,
como um boêmio feliz eu vim dormir contigo.
De sonho em sonho andei.Fui poeta, fui mendigo.
Corri atrás do tempo e me perdi no espaço
e vi se desfazer meu pensamento antigo
e em sangue transformar-se a sombra do meu passo.
Um dia, a procurar-te, olhei para o poente:
na estrada solidão da tarde, impertinente,
um pássaro de sol crepusculava a esmo.
Então eu te encontrei e, em meu triste abandono,
meus olhos disfarcei na volúpia do sono
e caminhei contigo em busca de mim mesmo.

Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos







do livro PLURAL DE NUVENS



LUDUS


Tolle, lege. 
Santo Agostinho

Toma a palavra, e principia. Tudo 
tem um pouco de ti: um sol, um sema. 
No fundo, teu desejo:
............................. lodo e ludo, 
jogo de truque e blefe de poema.

Toma este livro, toma e lê (ou lege);
não só um tomo, a obra inteira soma 
à solidão maior que te protege 
como um corpo de baile no idioma.

E toma ao pé da letra o que combina 
com teu gosto e prazer:
............................. o cimo, a suma 
de todos os sabores,
............................. vitamina, 
quintessência final de coisa alguma.

Gilberto Mendonça Teles
In 'Plural de Nuvens’(1990)


AQUI E AGORA


Procuro o aqui e o agora, 
o agoraqui, o que já foi 
e continua: a cor de outrora 
no couro curtido de um boi.

Procuro o que está sendo, 
o que se acende, o que se apaga,
o acontecido acontecendo, 
sombra de peixe fora d'água.

Procuro o que figura
no que perdi te procurando,
o que se gastou na usura
do que me vem de vez em quando.

Procuro o que projeto 
além de mim, no que me sobra: 
talvez a sombra de um inseto 
na plantação da minha obra.

Procuro o procurar-te, 
o que sempre fiz e não sei. 
Talvez o aqui e o agora, a parte 
do que ficou fora da lei.

Gilberto Mendonça Teles
In ‘Plural de Nuvens’(1990)



PLURAL DE NUVENS


Se há um plural de nuvens e se há sombras
projetadas no texto das cavernas,
por que não mergulhar, tentar nas ondas
a refração dos peixes e das pedras?

Há sempre alguma névoa, um lado obscuro
que atravessa o poema. Há sempre um saldo
de formas laterais, um como escudo
que não resiste muito a teu assalto.

Se alguma luz na contraluz se esbate,
se há no curso dos dias sol e vento,
talvez na foz do rio outra cidade
venha no teu olhar amanhecendo.

Importa é caminhar, colher florzinhas,
somar os ( im ) possíveis e parcelas,
criar no tempo algumas coisas findas,
algumas ilusões e primaveras.

Importa é ler de perto a cavidade
das nuvens e espiar os seus não-ditos:
o mais são armas para o teu combate,
falsos alarmes para os teus sentidos.

Gilberto Mendonça Teles
In Plural das Nuvens


SIGNO

Ainda existe a rosa nos cabelos 
vermelhos da poesia.


Ainda há força 
no azul do seu mistério, no seu canto,
no eixo de sua aérea encruzilhada.


Ainda, a sua origem, seu mais íntimo
silêncio: o veludoso ardor das pétalas,
o aroma das amoras no políndromo,
das palavras de aladas peripécias.


Ainda, esta morada, o seu precioso
espaço interior, o alumbramento
da forma em desatino, a descontínua 
perspectiva do ser na travessia.


Ainda, a sua angústia, o novo tempo
se exaurindo nas coisas, lapidando
os favos da romã e consumindo
seu avesso de fogo e sutilezas.


E ainda a sua imagem:
lago, espelho,
alma e corpo submerso, o indelével
estribilho do amor e seu disfarce,
e seus pontos de cruz na superfície.


Gilberto Mendonça Teles
In Plural de Nuvens















CANTIGA



Se vives dentro da noite
como uma estrela , a brilhar,
eu vou pela noite a dentro
no meu silêncio, a sonhar.

(Alguém haverá que impeça
um sonhador de sonhar?
E essas palavras comuns,
não são também para usar?)

Estendo as mãos: a distância
se interpõe.Fico a pensar:
por que as estrelas são tantas?
Por que não posso voar?

Gilberto Mendonça Teles
In 'Poemas'


CHUVA



Era uma chuva tão pura
mas tão triste e fina e fria.
Era uma cinza de inverno,
fumaça de água,
fatia
ou faca de aço nas árvores,
chagando a terra macia,
pondo lodo nos caminhos,
angústia no que se via.
Tristeza brava,
de chumbo,
cavalo azul que mordia
a tarde,
o campo,
a distância
nos pastos da ventania.
Seu rato mole,
de sombra,
sulcava o tempo,
dormia
nos pêlos úmidos, cheios
da vida que se escondia
sob o silêncio das pedras,
das raízes, do que havia
longe dos olhos dos homens,
longe dos olhos do dia.


Gilberto Mendonça Teles
In: "Pássaro de Pedra"

DO LIVRO & CONE DE SOMBRAS


TEORIA

1

Minha paixão teórica
é muito mais que paixão;
não está longe nem próxima,
está no ar e no chão.

Tem seu real, mas é órfica
como o sim, como o não;
sua antena parabólica
capta só distração.

Nunca exibe o seu código
livre na palma da mão,
embora sempre erótica
no seu tempo e viração.

Minha paixão teórica
segue o exemplo da inflação:
sobe e desce sem órbita,
é mais que bala – é balão.


Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras


2


Deixe que venha o poema
como um telefonema.

Deixe que o poema venha,
mas ponha fogo e lenha.

Que o poema venha, deixe,
mas com molho no peixe.

De lenha e telefonema,
de peixe e algum dendê,
pode-se ter um poema,
dependendo de você,

que é capaz de ver anjo
voando de mini-saia,
sem se dar conta do arranjo
ou do rabo-de-arraia.


Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras


3


Eu não sei se sou leigo ou laico,
sei que este poema é prosaico.
E sei que em matéria de poema
melhor é não criar problema.

Cada um escreve o que pode:
este aqui tem barba e bigode
e pode até não ter cabelo,
mas não é preciso dizê-lo.

O leitor, que hoje está na moda,
é que deve fazer a poda
e colher o que mais lhe agrade,
mesmo que seja tempestade.

Mas se eu não for laico, for leigo?
E se o meu poema for meigo?
Como é que fica o meu conceito,
se ainda não matei o sujeito?

E acho mesmo que além de tudo
um poema, mesmo sisudo,
pode até ser (tecer faz mal?)
um poema sentimental.

Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras



ENTREMÊS


Poe trás da sombra, a cortina:
por trás, seu palco de susto:
ensaia-se uma obra prima
nas cenas das contraluz.

Pula no centro um fonema,
faz piruletras e ponto.
(No camarim uma pena
procura imitar o tom.)

Cada vogal com seu luxo
de cores e metaplasmos
se enrola num caramujo
para os disfarces nasais.

A seguir as consoantes,
marcando o ritmo de um órgão
se curvam fazendo grandes
acrobacias no chão.

No bastidor as palavras
treinam seus malabarismos:
pernas pretas pernas alvas
jogo de amor nos quadris.

E logo, formando fila,
saltam rindo para o palco,
dançando rock, quadrilha,
puxando seu carnaval,

formando grupos, figuras,
coreografias de gestos,
mil movimentos de agulhas
e de novelos nos pés.

E fazem tudo tão simples,
com a tal perícia e tal arte
que só se escutam os timbres
de seu prazer de cantar.

Depois, em forma de reza,
entre palmas e mãos postas,
alguém prega alguma peça
na ponta deste retrós.

Nas cenas da contraluz,
ensaia-se uma obra-prima;
por trás das sombras, o susto;
por trás do susto, a cortina.


Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras



CANÇÃO

Aquém da fala
a voz resvala
na escuridão:
quer ser figura,
torna-se pura,
ser a canção,
o vento, a praia,
nuvem, cambraia
no céu, no chão,

Mas o que excita
a forma escrita
na minha mão,
o que foi lido
ou pressentido
no sim, no não,
ainda resvala
além da fala
na escuridão.

Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras


CRÍTICA


seu livro tem altos & baixos


os altos ideais & os baixos princípios
as altas qualidades & os baixos instintos
a alta fidelidade & o baixo meretrício
a alta freqüência & o baixo contínuo
o alto da cópula & o baixo da cúpula
o alto cargo & o baixo calão
o alto da boa vista & o baixo leblon
o ponto mais alto & o mais baixo relevo
o alto falante & o baixo falido
o que anda alto & o que pisa baixo
o alto poder de & o baixo costume de

seu livro tem altos & baixos

embora o tenha lido muito por alto
& em baixo astral



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



A Pedra


No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?

Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?

No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.

No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala, 
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.

No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras


VEIA POÉTICA


às três horas da manhã
de uma quarta-feira de cinzas
o poeta olhou mais uma vez
a árvore dourada da existência
fechou o livro de teoria
abriu as veias
e começou a escrever em silêncio
o seu poema definitivo



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



DOCUMENTO


Pego um selo qualquer, uma estampilha
dessas de educação de antigamente,
e dou ao texto um cunho de vigília,
de estado de leitura permanente.

Mas falta-lhe um relógio de ambiente,
falta um jogo de escrita ou de mobília;
e o que se conta nunca está de frente,
tem sempre um jeito oblíquo, de armadilha.

Fosse um papel sem lado, e o meu papel
talvez se sustentasse no apelido,
nalgum nome que se abre como um delta,

como uma linha-d’água, um claro-escuro,
um sinal para ser reconhecido
sem timbre e protocolo, no futuro. 



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



PASSATEMPO


Como num jogo, sem barulho,
escolhemos a parceria,
tomamos nossos lugares
e nos dispusemos à sorte das cartas.

Houve tímidas apostas.
Compramos, descartamos,
discutimos as regras,
mas tudo pelo simples
prazer do passatempo.

Se houve boas jogadas
e algum blefes
(trapaças, talvez),
ainda é cedo para saber.

O certo é que fizemos
21 pontos nesta rodada.
A mesa ainda está disposta
e o jogo continua.

Quem está ganhando/perdendo?
E o baralho agora de quem é?


PS

E este punhal de prata enfincando de longe
bem no centro da mesa?



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



INVEROSSÍMIL


Mais justo é resistir às conveniências
dos sábados, fechar as mãos no fundo
dos bolsos, pôr os olhos o mais baixo
possível,
rastejar,
lamber o chão
e reduzir as margens do real
à lógica do absurdo.

Há sempre alguém envernizando a linha
dura de teu discurso. Há sempre alguém
tentando surpreender a forma aérea
de teu gesto no instante em que modulas
por dentro o teu vazio.

Melhor é resistir: além dos sábados
a vida continua, e seus disfarces.



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras




SUBVERSÃO


Nos compêndios de história
desfilam apenas os blocos
de reis, imperadores e generais
que não acabam nunca mais.


Foram sempre justos, belos e bons
e além de tudo geniais:
escreveram seus livros de linhagem
e as nobiliarquias tradicionais.


Para garantir seus direitos divinos
(e seus interesses patrimoniais),
criaram as leis, os documentos e até os cargos
de historiadores oficiais.


Nos compêndios de história
não há povo, falta o carnaval das gerais.
Somente existe a multidão
de reis, imperadores e generais. 



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras





SÁFICA

A Junito Brandão


Sou aquele que te escutou e te viu,
para ciúmes de Safo cuja voz
tinha a forma triste de uma alma talvez
trêmula demais.


Sou igual aos deuses, maior até: sou
quem te lê nas dobras da língua, no som
deste carme feito para Lésbia, ao sol
deste amor tão só.


Sou também aquele que pôs nos braços
de Lídia o mais vívido amor, aquele
que esqueceu a túnica belicosa
no auge da paixão.


E sou agora o signo desse cisne
cuja plumagem lírica sustenta
a vastidão do tempo.
Queira Apolo 
dourar meu canto para além de mim.




Gilberto Mendonça Teles



C’ANTIGA


Na corte d’amor eu sofro, coitado.
Pecador eu fui por não ter fisgado
a maior paixão.


Por não ter cruzado a linha d’ambíguo
na corte d’amor não fiquei contíguo
à maior paixão.


Na corte d’amor, no meu coito achado,
trovador eu fui mas sem ter provado
a maior paixão.


Por não ter cruzado a linha d’embigo,
na corte d’amor não sofri contigo
a maior paixão. 




Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



TRAGÉDIA DA PIEDADE


namorou-lhe a mulher
assassinou-o
matou-lhe o filho
contraiu núpcias
com a viúva 
e com os direitos
autorais
e alguns galões
abandonou a mulher
e se perdeu nos sertões.



Gilberto Mendonça Teles


HOMOLOGIA


Depois que Cabral atravessou
a montanha de mares nunca dantes
e foi, próspero, educando
as pedras e equinócios dos Andes,


os sete mil e quinhentos quilômetros de
foram logo substituídos
pelo sete mil e quinhentos quilômetros
de montanhas, índios e vulcões.


Depois que Cabral descobriu
o maritimontanhoso das palavras mais
e foi, prospero, reeducando
o verso decassílabo das pedras,


os cinqüenta milhões de poetas do
foram logo substituídos
por outros cinqüenta milhões 
de montanhas, índios e vulcões. 



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



CENTÃO SIMBOLISTA


cítaras, harpas, bandolins, violinos,
mórbidos, quentes, finos, penetrantes,
carinhos, beijos, lágrimas, desvelos,
desejos, vibrações, ânsias, alentos.


mares, estrelas, tardes, natureza,
inefáveis, edênicos, aéreos,
sinistras, cabalísticas, noturnas,
esferas, gerações sonhando, passam!


sombra, segredo, lágrima, harmonia, 
pálida, bela, escultural, clorótica,
atra, sinistra, gélida, tremenda,


alvo, sereno, límpido, direito,
amplo, inflamado, mágico, fecundo,
ondula, ondeia, curioso e belo.


Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



Modernismo



No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.


Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.


Um sujeito que nesta reta de chegada dos cinqüenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.


Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.


Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século


e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.


Gilberto Mendonça Teles
(&cone de sombras, 1986,p.153.)


























quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Um poema de Gastão Neves:


Meu relógio se aliena,
cumpre apenas o andamento.
Eu cumpro da vida a pena
de criar meu movimento.

Quem espera sempre alcança,
eu não espero nem vou,
- há muito renego a herança
de ser o que já não sou.

[Gastão Neves]

''Silêncio'' (trecho)



(…) Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar?

É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve.

(Clarice Lispector)

Excerto de 'A descoberta do mundo: crônicas'

"Primavera"


Primavera Ah! quem nos dera que isto, como outrora,
Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera
Que inda juntos pudéssemos agora
Ver o desabrochar da primavera!

Saíamos com os pássaros e a aurora.
E, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
Sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"

E esse corpo de rosa recendia,
E aos meus beijos de fogo palpitava,
Alquebrado de amor e de cansaço.

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera... E eu te levava,
Primavera de carne, pelo braço!

Olavo Bilac,
in "Poesias"


[Tela de  Alexander Averin]

''O ETERNO AUSENTE''


A hora de partir foi tão inesperada!
Fechaste mansamente as portas da morada
E partiste.

Numa orgia floral, chegava a primavera,
Enchendo todo o céu de risadas de luz.

Por certo, o seu rumor feriu tua alma triste
Cerraste mansamente as portas da morada
E partiste.

Helena Kolody
de Musica Submersa 


[Tela de Eugène-Henri Cauchois]

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

"Telas vivas"

 
Emoções são como tintas
em telas distintas
coloridas ou não,
imaginadas na mente,
em forças cadentes
impressas no coração.

Warllem Silva
In: Infinitude da Graça

"O verbo - a luz - o dia"


"Primeiro o espanto
seguido do pranto
num profundo vazio.

Preenchido por lágrimas,
sorrisos, dor e agonia!

Hoje alegria-aconchego
o verbo - a luz - o dia!"

Warllem Silva
In: 'Infinitude da Graça'


 [Tela de Alexander Averin]

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

''POEMA ESCRITO NO CHÃO''


Nos reveses desta vida
o amor não sofre senão
quando a alma é ferida
nos espinhos da paixão.

A desculpa concedida
no revés da ingratidão
arrefece a dor sofrida
no perfume do perdão.

Vê o vôo nas planuras
do orgulho nas alturas
que inebria o coração...

Deus que deu à alma das rosas o luzir das cores
também deu por abundância o perfume às flores
que rastejam pelo chão...


Afonso Estebanez

‘AVE’


ave
incrustada no espaço
ponto azul

isolada

(pedra
em parábola
no poema
espaço-tempo)

projeta
a fuga
no ângulo
de um voo

crê

demasiado em seu
escudo plumagem

ignora

quem seja
esboço apenas


Ricardo Augusto dos Anjos
De ‘Após a tragédia’
Editora Engra- 1962-

‘Poema’

ancorado está meu coração
nesta praia silenciosa onde
meus olhos de espanto como os peixes
espreitam a aurora de vidro que
deverá conduzir-me a transparência,
ao multicor. serei duende de cristal
integrado no que é mágico tentarei
o voo exato das aves idealizadas num tempo
anterior a aurora de vidro que resolvo
anterior ao pranto de onde procedo

Ricardo Augusto dos Anjos
De ‘Após a tragédia’
Editora Engra- 1962-

domingo, 8 de setembro de 2013

NÃO ERA ISSO




Não.
Não era isso.

O que eu queria dizer
era tão alto
e tão longe 
que nem conseguiu soletrar
suas palavras-estrelas.


Helena Kolody
In: Poemas do Amor Impossível







PALAVRAS




Aluviões de palavras
corroem as cordilheiras.
Densas nuvens de palavras
limitam os horizontes.
Os batalhões de palavras
concentram as agressões.
Há loucura de palavras
a brotar por entre as pedras
de inumeráveis caminhos.

Ao passarem as palavras,
brilhará, límpido e eterno,
o Verbo esquecido. 


Helena Kolody
In: Sinfonia da vida 

A MIRAGEM NO CAMINHO



Perdeu-se em nada,
caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.

(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho).

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho




LOUCURA LÚCIDA



Pairo, de súbito,
noutra dimensão

Alucina-me a poesia,
loucura lúcida.

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

INFINITO PRESENTE



Estou sempre em viagem.
O mundo é a paisagem
que me atinge de passagem

Helena Kolody,
in Viagem Submersa



NUNCA E SEMPRE



Sempre cheguei tarde
ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.

Nunca floresceram
em minha primavera
as rosas que sonhei colher..

Mas sempre os passarinhos
cantaram e fizeram ninhos
pelos beirais
do meu viver.


Helena Kolody
in Sinfonia da vida 




O SENTIDO SECRETO DA VIDA



Há um sentido profundo
Na superficialidade das coisas,
Uma ordem inalterável
No caos aparente dos mundos.

Vibra um trabalho silencioso e incessante
Dentro da imobilidade das plantas:
No crescer das raízes,
No desabrochar das flores,
No sazonar das frutas.

Há um aperfeiçoamento invisível
Dentro do silêncio de nosso Eu:
Nos sentimentos que florescem,
Nas idéias que voam,
Nas mágoas que sangram.

Uma folha morta
Não cai inutilmente.
A lágrima não rola em vão.
Uma invisível mão misericordiosa
Suaviza a queda da folha,
Enxuga o pranto da face.

Helena Kolody
in Correnteza

IDENTIFICAÇÃO



Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a mudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei na seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n’alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.


Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais glorioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.


Helena Kolody,
in Paisagem Interior 





PEDIDO



Enche de silêncio a minha taça.
Unge-me de esquecimento.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho


RESSONÂNCIA



Deixa-me ser a gruta à beira-mar,
Longamente a ressoar de Teu rumor eterno.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho

VIAGEM



Era um pássaro triste.
Andorinha exaurida,
A viajar para longe.
Em suas asas tremia
Um prenúncio de morte.
A árvore acenou da distância
Um fraterno chamado.
Repousou a andorinha
E sonhou longamente,
Acordada.
E foi, aquele sonho, a vida.

Helena Kolody,
In luz Infinita

TRISTEZA DAS MÃOS



Choram em silêncio a dor de envelhecer.

Foram um dia a graça inocente
De um berço num lar.

Pálidas mãos, sulcadas de renúncias!

Foram jovens e belas,
Confiantes em si mesmas, todo-poderosas.

Tímidas mãos que se apagam na sombra!

Mãos feitas de luz, intrépidas e leais,
Solícitas e compreensivas,
Ternas mãos maternais.

Velhas mãos solitárias,
Como dói recordar!


Helena Kolody,
de Correnteza

TRANSFIGURAÇÃO



Numa luz verde, velada,
contra o céu de opala e nácar,
os arranha-céus,
ao anoitecer,
são estalagmites
em gruta de bruma,
onde gotejam estrelas.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho


SIGNIFICADO



No poema
e nas nuvens,
cada qual descobre
o que deseja ver.

Helena Kolody
in Poesia Mínima 

SALDO



Na pagina adolescente
deste mundo em flor,
sou um saldo anterior.

Helena Kolody
in Poesia Mínima

SINFONIA DA VIDA



Seu livro de estréia, Paisagem interior, publicado em 1941,
 contém 45 poemas, três dos quais são haicais.
Alguns dos poemas deste primeiro livro foram depois
 retrabalhados por Helena, conforme pode-se ver em edições
 posteriores reunindo suas obras. O seguinte depoimento,
 transcrito na antologia Sinfonia da Vida (1997),
 é significativo:

Antigamente, eu me derramava em palavras. Um dia,
 o Dr. Andrade Muricy, um paranaense que era crítico de
 arte no Rio de Janeiro, aconselhou-me: “Você vai muito
 melhor no poema curto. Você quer encompridar e, 
às vezes, dilui o poema ou se repete. Você tem talento
 para a síntese”. Daí em diante, comecei a cortar os
 excedentes, deixando só o sumo, o essencial.

TRISTEZA DAS MÃOS


Capa da primeira edição de ‘Correnteza’ 1.977

Choram em silêncio a dor de envelhecer.

Foram um dia a graça inocente
De um berço num lar.

Pálidas mãos, sulcadas de renúncias!

Foram jovens e belas,
Confiantes em si mesmas, todo-poderosas.

Tímidas mãos que se apagam na sombra!

Mãos feitas de luz, intrépidas e leais,
Solícitas e compreensivas,
Ternas mãos maternais.

Velhas mãos solitárias,
Como dói recordar!


Helena Kolody

A SOMBRA DO RIO


Capa da primeira edição de 'A sombra no Rio' - 1.951-

ANTOLOGIA POÉTICA


Capa da Primeira Edição de Antologia Poética- 1.967

CANÇÃO DE NINAR


(Capa da 1ª edição do livro.)

(para uma criança da favela) 

Criança, és fio d'água 
Triste desde a fonte. 
Humilde plantinha 
Nascido em monturo: 
Quanta ausência mora 
Nesse olhar escuro!

Recosta a cabeça 
Na minha cantiga
Deixa que te envolva,
Que te beije e embale. 

Helena Kolody 
Do livro: "Vida breve" [1964],

APELIDOS



Eram Jucas e Chiquinhos, 
Ninas, Lolas, Mariquitas. 
Apelidos que o amor 
seleva nas criaturas. 

Hoje são números. 
(Computadores não programam ternura) 

Helena Kolody 

Do livro: "Ontem agora", Secretaria de
 Estado de Cultura do Paraná, 1991, PR
 

OBRAS DE HELENA KOLODY



Obras 

1. Paisagem interior. edição da autora, 1941.
2. Música submersa, edição da autora, 1945.
3. A sombra do rio, edição da autora, 1951.
4. Triologia, separata de Um século de poesia.
 Curitiba. Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1959.
5. Poesias completas. Curitiba: edição de homenagem 
a cargo de alunos, 1962.
6. Vida breve, edição da autrora, 1964.
7. 20 poemas, reunião e edição da autora, 1965.
8. Era espacial e Trilha sonora, edição da autora, 1966.
9. Antologia poética, organiza e editada pela autora, 1967.
10. Tempo, edição da autora, 1970.
11. Correnteza, edição da autora, 1977.
12. Infinito Presente, edição da autrora, 1980.
13. Poesias escolhidas. Curitiba: Sociedade dos
 Amigos da Cultura Ucraíana. Tradução de Wira Wowk
 para o ucraniano, 1983.
14. Sempre palavra. Curitiba: Criar Edições, 1985.
15. Poesia mínima. Curitiba: Criar Edições. 1986.
16. Viagem no espelho: reunião. Curitiba: Criar 
Edições, 1988.
17. Ontem, agora. Curitiba: Secretaria do Estado de
 Cultura, 1991.
18. Reika, Curitb: Fundação Cultural de Curitiba, 1994.
 Série Buquinista. 19. Antoloia poética. Curitba: 
Livrarias Curitiba, 1994.
20. Viagem no espelho, 2ª edição. Curitiba: Editora da
 UFPR, 1995.
21. Caixinha de música. Curitiba: Secretaria do Estado 
da Cultura, 1996.
22. Luz infinita. Curitiba: Museu Biblioteca Ucraniana
 em Curitiba. Tradução de Ghryghory Kotchur e Wira 
Selanski para o ucraniano. Edição bilíngüe.


Texto retirado do Livro "Helena Kolody - Sinfonia da
 vida; Organização: Tereza Hatue de Rezende. 
Coleção Antologia poética. D.E.L. Editora/Letraviva,
 Pólo Editorial do Parná "A transformaçaõ que a gente lê.
 - 1997, pág. 

AUTO-BIOGRAFIA



Nasci no dia 12 de outubro de 1912, no núcleo colonial de Cruz 
Machado, em pleno sertão paranaense. Eram 8 horas da manhã de
 um dia de sol e geada. 

Meus pais eram ucranianos, que se conheceram a casaram no Paraná.
 Eu sou a primogênita e a 1ª brasileira de minha família. 

Miguel Kolody, meu pai, nasceu na parte da Ucrânia chamada
 Galícia Orienta, em 1881. Tendo perdido o pai na grande 
epidemia de cólera que assoloua Ucrânia em 1893, Miguel,
 no ano seguinte, emigrou para o Brasil com a mãe e os irmãos. 

Mamãe, cujo nome de solteira era Victoria Szandrowska, também
 nasceu na Galícia Oriental, em 1892. Veio para o Brasil em 1911. 

Vovô radicou-se em Cruz Machado, onde papai trabalhava. "Seu" 
Miguel conheceu a jovem Victoria e apaixounou-se por ela. 
Casaram-se em Janeiro de 1912. Estava escrito o primeiro 
capítulo da minha história. 

Texto retirado do Livro "Helena Kolody - Sinfonia da vida; 
Organização: Tereza Hatue de Rezende. Coleção Antologia 
poética. D.E.L. Editora/Letraviva, Pólo Editorial do Parná
 "A transformaçaõ que a gente lê. - 1997, pág. 11. 

BIOGRAFIA DE HELENA KOLODY



Nascimento-Cruz Machado,PR- 12 de outubro de 1912 — 
Morte-Curitiba, 15 de fevereiro de 2004


Em 12 de outubro de 1912, Helena nasceu, filha de Miguel
 e Vitória Kolody, imigrantes ucranianos, em Cruz Machado,
 Paraná. É a primeira brasileira da família. Passou a 
infância no cenário catarinense de uma pequena vila :Três
 Barras. Com 16 anos teve a primeira publicação de um poema 
seu, “A lágrima”, na revista O Garoto, editada por 
estudantes. Trabalhou por 23 anos no Instituto de Educação. 

“Desde pequena eu amei as palavras. Quem me alfabetizou foi
 minha tia de Rio Negro, professora do primeiro ano primário.
 Eu nunca esqueço a primeira cartilha que tive em mãos,
 cheia de figuras. Amei tanto aquele livro que nunca mais
 parei de ler. As escolas emprestavam livros de sábado para
 segunda e, assim, eu passava os finais de semana lendo e 
lendo.”


Helena apreciava, desde pequena, a leitura de livros,
 revistas, textos que lhe caíssem à mão. “Passava os finais
 de semana lendo. Umas coleções, como “As grandes lendas da
 humanidade “ eram minha delícia naquela época , tudo com o
 elemento maravilhoso , mágico“. Assim , Helena Kolody 
permeou sua produção poética com a crença no homem e em 
suas possibilidades desde que aliada à religiosidade. A
 análise intimista – alma solitária , silêncio , apego a 
bens espirituais , carência amorosa – constitui em traço
 forte de seu trabalho. "Quando criança, eu já gostava
 de  poesias e as cantava como se fossem hinos da escola."
 Ela lembra ainda de amores platônicos na adolescência, que
 lhe inspiraram algumas poesias em que aparece uma
 resignação altiva. "Não acreditava que me amavam. Eu era
 meio gordinha..." Helena não apreciava o progresso e este
 fato fez com que o leitor observasse poemas amargurados,
 melancólicos associados a um fio de esperança no dia de 
amanhã. Com circularidade, ela produziu textos poéticos
 que se avultavam em antíteses ou mesmo abstrações e 
humildade. 

Ocupou a cadeira número 28 da Academia Paranaense de Letras. 

Em 14 de fevereiro de 2004, Helena se despede do mundo que
 tão bem a recebeu e que tantas informações recebeu dela.
 Uma perda que pode ser preenchida pela divulgação de
 seus poemas – eternos versos de vida. 














sexta-feira, 6 de setembro de 2013

POEMAS DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Criação



O verbo nunca esteve no início
dos grandes acontecimentos.
No início estamos nós, sujeitos
sem predicados,
tímidos,
embaraçados,
às voltas com mil pequenos problemas
de delicadezas,
de tentativas e recuos,
neste jogo que se improvisa à sombra
do bem e do mal.


No início estão as reticências,
este-querer-não-querendo,
os meios-tons,
a meia-luz,
os interditos
e as grandes hesitações
que se iluminam
e se apagam de repente.


No início não há memória nem sentença,
apenas um jeito do coração
enunciar que uma flor vai-se abrindo
como um dia de festa, ou de verão.


No início ou no fim (tudo é finício)
a gente se lembra de que está mesmo com Deus
à espera de um grande acontecimento,
mas nunca se dá conta de que é preciso
ir roendo,
roendo,
roendo
um osso duro de roer.


Gilberto Mendonça Teles,
in Álibis



História


Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.


Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.


Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.


Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.


Gilberto Mendonça Teles



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não.


Gilberto Mendonça Teles





DECLINAÇÃO



O mar não me levou:
o meus cuidados
(o que era ruim /o que era bom demais)
ficaram por aí, pelos cerrados,
à sombra dos paus-terras de Goiás. 

O mar não me lavou:
meu corpo todo
tem as marcas da terra – o sol, o chão,
os cheiros doces dos quintais, do lodo,
e a febre do meu T nesta sezão. 

Eu sou quem sou. Não me mudei. Mudou-me
uma parte da vida, mas foi sem:
não me levou nem me lavou,
livrou-me
da danação de todo mal, amém. 

(Se houver louvor aqui, se alguma luva,
qualquer pessoa a pode usar por mim:
a minha história é como um guarda-chuva
que a gente esquece,
quando chega ao fim.)


Gilberto Mendonça Teles



ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem. 

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 


Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO


Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles




ANÚNCIO 



Troco urgentemente uma secretária 
eletrônica, 22ov, bastante conservada 
(motivo mudança de amor e domicílio), 
por uma secretária invisível, 
dessas que fazem desaparecer 
tudo de repente: 
colóquio de alquimistas 
congressos de bruxas 
reuniões de catedráticos 
e até o I simpósio 
de mulheres jubilosas. 

Que seja loirena e diligente, 
que seja meiga, sobretudo quando visível. 
Que não se esqueça dos pequenos aniversários 
(uma semana disso, um mês daquilo) 
e os saiba comemorar condignamente 
nalgum lugar secreto: 
ilha ou limbo 
beira de mar 
quarto de hotel 
fumaça de cachimbo. 
Que seja também multilíngüe 
para entender-me em todos os sentidos. 
E que não perca nunca o seu charme 
para me seduzir ou raptar-me 
nas horas mais incríveis de solidão. 

(Cartas para esta redação.) 

Gilberto Mendonça Teles





Preciso urgentemente encontrar 
minha secretária invisível 
que se perdeu sexta-feira 
em reuniões e telefonemas 
e me deixou a ver navios. 

Melhor: um submarino atômico 
que entrou pelo rio e bombardeou 
toda a cidade, virando-a 
pelo avesso, como um absurdo 
e até remoto cataclismo. 

(Gratifica-se bem quem der notícia 
a esta redação. Ou à polícia.) 

Gilberto Mendonça Teles




ORIGEM

Agarro o azul do poema pelo fio
mais delgado da lã de seu discurso 
e vou trançando as linhas do relâm-
pago no vidro opaco da janela. 

Seu novelo de nuvens reduplica 
a concreta visão desse animal 
que se enreda em si mesmo, toureando 
a púrpura do mito e se exibindo
diante da minha astúcia de momento. 

Sou cheio de improviso. Sou portátil. 
E sou noite e falácia. Sou impulso
e excesso de acidentes. Sou prodígios.
E agora que há sinais de ressonância 
sou milícia verbal configurando 
a subversão na zona do silêncio. 
.......................
Todo início é noturno. Todo início
é maior que seu tempo e sua agenda 
de imprevistos. Mas todo início aguarda 
a visita dos deuses e demônios.

Há fórmulas polidas nos subúrbios 
da fala. Há densidades nos recintos 
desprovidos de margens. E nos mínimos
detalhes de ruptura existe um sopro
de solidão que soa nesta vértebra 
de audácia e persistência. 
...........................................Alguém pertuba 
o horário de recreio das palavras. 

Gilberto Mendonça Teles
In 'Arte de armar' (1977)


CONVITE

Vem comigo para dentro 
da palavra multidão:
de mãos dadas somos vento,
somos chuva de trovão.

Se uma andorinha sozinha
não pode fazer verão, 
vem comigo mais ainda 
para dentro da expressão. 

Cada letra tem seu ninho 
de palavras no porão:
vem tirá-las de seu limbo, 
vem fazer tua oração. 

Dentro de cada palavra,
no seu timbre e elocução, 
saberás de peixe, cabra, 
de liberdade e quinhão. 

E até na palavra nova, 
bliro, ilhaval e zirlão 
alguma coisa se dobra, 
tem sentido a sedução. 

Pega portanto uma letra, 
pega a palavra invenção
e transforma em borboleta 
um risco arisco no chão.

É no centro da linguagem,
no seu silêncio e pressão, 
que se dedilha uma casa, 
que se desenha a canção. 

Gilberto Mendonça Teles
In (Álibis) 2000.



Etnologia


Ainda 

há índios.

Gilberto Mendonça Teles



Nos Últimos 20 anos

Nos últimos vinte anos, muitas coisas
tiveram seu princípio –

.................Uma lagarta
começou a comer o talo verde
de uma folha esculpida na parede
do edifício mais próximo.

................Uma aranha
teceu e desteceu a sua renda
à espera da odisséia de um inseto
curioso.

................Um beija-flor impaciente
começou a amolar o longo bico
no metal do verão.

................Recém-nascido,
um menino berrava o beabá
mijando indiferente na linguagem.
Entre greves, censura e terrorismo,
um relâmpago veio da internet,
riscou no movimento o próprio site
e se perdeu na pós-modernidade
do milênio.

................Enquanto isso, o amor abria
seus e-mails (sem vírus), a sua flor
de signos, suas formas, a sua arte
de escandir as vogais, tanger os ictos,
as consonâncias e, sílaba a sílaba,
plantar no íntimo do homem o desejo
mais fundo da poesia.

Gilberto Mendonça Teles



DILEMA

Tenho o sangue da gente aventureira
e o amor à terra que me deu o sonho.
Mas me encontro parado na fronteira,
sem saber se recuo, ou se a transponho.
Aprisionado pelo ideal que sonho
na solidão da praia derradeira,
risco na areia o poema que suponho
ficará na memória a vida inteira.

O gosto de lutar contra o imprevisto
fez-me todo de vento e não resisto
ao desespero bom de ir mais além.
Estendo os olhos para o mar, e penso:
"- Tenho chumbo nos pés e o mar e imenso:
só me resta sonhar como um refém." 


Gilberto Mendonça Teles



MELODIAS

Ternas melodias de longínquas plagas,
ns manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.

Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas erras vindes me encantar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?

Ou vindes dos astros – de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos,
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.

Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha:
São as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha.

Essas melodias que a minh´alma douram,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.


Gilberto Mendonça Teles



O OUTRO

Já não serei eu mesmo, serei outro
quando me virem segurando as horas
e desenhando pássaros barrocos
nas pétalas das conchas e das rosas.

Se, deslumbrado pela luz da autora,
eu caminhar sem rumo, como um louco,
sabei que levo estrelas na memória
e me contemplo velho, sendo moço.

Diante dos homens gritarei comícios
e arrastarei por onde for o bando
que me seguir os passos indecisos.

E quando a noite vier rolando o medo,
eu dormirei nas pedras como um santo
e sonharei nas ruas como um bêbado. 


Gilberto Mendonça Teles







SONETO XXII


Não morrerás em mim. Não morrerás
assim como uma sombra na distância,
o vento no horizonte e, nas manhãs,
a alegria mais pura que inventamos.
Serás presente em tudo e viverás
o segredo de todos os momentos.
Todas as coisas gritarão teu nome
e o silêncio mais puro, o mais sutil,
aquele que mais dói e acende as noites
e o ser profundamente intranqüiliza
este restituirá o movimento,
a eternidade viva de teus passos
e a certeza mais limpa de que nunca
tu morrerás em mim.
Não morrerás.


Gilberto Mendonça Teles
de Sonetos do azul sem tempo






ROSÁRIO

Para Mary

Em pleno sol de outono, em pleno maio, abrindo
a alma para os cristais dos dias mais risonhos,
vou desfiando ao léu, pelo horizonte infindo,
meu rosário de sonhos.

Vou desfiando, assim, meu rosário de contas
esplêndidas, azuis, de rósea cor tocadas
e que são como orvalho a oscilar-se nas pontas
das folhas pelo sol do estio marchetadas.

Hei de rezá-las todas.
Passá-las, de uma a uma, em cânticos de hinário,
que os dias deste mês de noivados, de bodas,
serão contas de luz na cruz do meu rosário.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


ACALANTO


Fecho meus olhos para o teu canto
e ouço a cantiga vibrando no ar:
asas de vento, sons de acalanto,
a luz do dia no próprio encanto
que o sol da vida te faz cantar.

Fecha teus olhos para o meu canto
e ouve o marulho longe de um mar,
lançando à praia do desencanto
todo o meu sonho desfeito em pranto
que o sal da vida me faz chorar.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos



CANÇÃO


As horas dançam no tempo
e o tempo, na madrugada.

Do cimo da vida, apenas
vejo a poeira na estrada.

Meus rastros viraram pedras
na terra do antigamente.

E as horas morrem no tempo
como o tempo, no poente.


Gilberto Mendonça Teles
Planície “in” Hora Aberta



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não. 

Gilberto Mendonça Teles



Meus Outros Anos


Eu me lembro, eu me lembro, Casimiro,
no meu São João, no meu Goiás, na aurora
da minha vida, eu li o teu suspiro,
li teus versos de amor que leio agora.

E que meu filho lê, e todo mundo
sabe de cor, de coração, de ouvido,
desde que sinta o apelo mais profundo
de tudo que tem força e tem sentido.

Contigo comecei a ver e vi
as coisas mais comuns - o natural:
o rio, a bananeira, a juriti
e a tarde que cismava no quintal.

Contigo descobri a travessia
do tempo na manhã, no amor, no medo,
nos olhares da prima que sabia
a dimensão maior do meu brinquedo.

E até este confuso sentimento,
esta idéia de pátria, que persiste,
veio de teus poemas, no momento
em que tudo era belo e apenas triste

era pensar no exílio e ver no termo
um motivo de doença e de pecado;
triste era imaginar o poeta enfermo,
tossindo os seus silêncios no passado.

Eu me lembro, eu me lembro! e quis de perto
ver o teu rio, teu São João, teu lar;
ler a poesia desse céu aberto
que continuas a escrever no mar.

Gilberto Mendonça Teles


ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem.

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 

Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO



Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles


Geração

Sou um poeta só, sem geração,
que chegou tarde à gare modernista
e entrou num trem qualquer na contramão,
e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela,
me trata como a um filho natural.
Eu chego às vezes tímido à janela
mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda
é que me vê brincando de arlequim.
Às vezes fujo à rima e lavo um fardo
de roupas sujas, não tão sujo assim..

A de sessenta e um foi de proveta,
foi mágica de circo para um só.
Ninguém me viu caçando borboleta
ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque
que se fez marginal pela cidade,
será que fez poesia ou fez xerox
ou apenas tropicou na liberdade.

Gilberto Mendonça Teles
de Hora Aberta


À Linha da Vida


A que, visível, se interrompe
na palma da máo, decisiva:
a ultrapassagem do horizonte
pelo lado avesso da escrita.


À Linha do Universo


A que, invisível, se deleita
no olho sensual da fechadura:
a letra (aleph) e seu pentelho
no espaço-tempo que se enruga.

E, anjo ou demônio, pinta o sete
mas tão relativo e medroso
que o tom azul logo se perde
na linha de fundo do esboço.


À Linha-d’água


Visível enquanto invisível,
compõe seu ritmo avergoado:
a imagem se imprime no nível
do que está deste e do outro lado.

Por sob a carga o sonho e o medo
de haver perdido e haver ganhado:
no contrabando do segredo
o contrapeso do sagrado.

E o que ficou quase perdido
(o que me deixa envergonhado)
ainda viaja sem sentido,
meio à deriva,
xxxxxxxxxxxe bem calado.


Rio, 1986.

Gilberto Mendonça Teles


Locus Amoenus


Sou homem do mato e meio bugre:
falo pouco e penso enviesado,
usando sempre expressões populares.
E, por gostar de fazer arte,
ando morto de amor,
mas vivinho da sílvia.

Às vezes sou até meio exibido:
mato a cobra e mostro logo o pau,
enquanto os deuses brincam
no lugar mais ameno da floresta.

Daí talvez o meu gosto e inclinação
pelas coisas mais simples:
cheiro de flor, resina, zigue-
zague de borboleta e barulhinho
de folha seca nos trilheiros,
além do indispensável gole de cachaça
que faz muito bem depois do poema.

O que não se explica é este jeito de sombra,
este balanço do corpo nos atalhos
e este sestro de chupar a ponta da língua
e extrair a polpa de uma fruta
no meio do cerrado.

É daí que aprecio melhor
o pisco repentino de uma estrela.

Gilberto Mendonça Teles


45

A Domingos Carvalho da Silva


Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?


(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)


Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?


Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco


de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão
entre o 4 e o 5.



Gilberto Mendonça Teles





EU TE ESPERO



Eu sempre te esperei.
Eu sempre te esperei em uma nuvem de neve
tão diáfana e sutil, tão vaporosa e leve
e, num halo de luz, vinda de onde não sei,
Eu sempre te esperei.
E eu sei que tu virás.
E eu sei que tu virás num sonho alucinado,
na brancura de paz de um silêncio ondulado
e, suave como um luar de finos tafetás,
eu sei que tu virás.
E nem sei quando vens.
E nem sei quando vens. O tempo é um hiato.
Só o amor é verdade, e tudo o mais, abstrato.
Só o amor é que encerra o supremo dos bens,
e nem sei quando vens.
Mas te espero feliz.
Mas te espero feliz e entre anseios te aguardo.
Hás de chegar um dia e nessa espera eu ardo.
Sempre, por toda a vida (é minha alma que o diz)
Te esperarei feliz.


Gilberto Mendonça Teles
(HORA ABERTA - poemas reunidos - Ed. Vozes, 2003)

DO LIVRO POEMAS REUNIDOS

Madrugada 


Ainda há estrelas no céu, tremelicando, tontas,
e a manhã já vem vindo, indolente e indecisa,
até que o passaredo o concerto organiza
para esperar-te, ó sol, que dos longes despontas.

Um rego d'água corre e um vento brando alisa
as franças do capim ridente,em cujas pontas
o orvalho da manhã esplende como as contas
de explêndido cristal que o sol, beijando , irisa.

As aves cantam numa alegria incontida;
a terra cheia, ri-se o capinzal molhado;
e toda a natureza é um hálito de vida.

E de há muito que está o caboclo de pé,
olhando, preguiçoso, e no sonho abismado,
a fumaça a subir do rancho de sapé.


Gilberto M. Teles
Im Poemas Reunidos



Simplicidade

Tudo é tão simples nesta vida e fica
às vezes tão confuso ou tão bisonho
que a linguagem das coisas se duplica
ante os olhos atônitos de sonho.
E essa simplicidade, clara e rica
de sensações indefiníveis, ponho
no pensamento real que frutifica
na ambiguidade em que me decomponho.
Mas o cenário vai mudando. E a vida 
se lança calma e convenientemente
na foz do tempo. E eu continuo , a esmo,
minha jornada interrompida,
procurando o horizonte inexistente
na planície impossível de mim mesmo.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos

IV

Há na espera um prenúncio de incerteza
sobre a alegria que não sei mais terna.
Tudo me leva a ti, e eu sigo mesmo
tocando estrelas cada vez mais perto.

Não desconheço a exatidão da noite
nem o horizonte que te ausenta sempre.
Um dia acordarei para teu corpo
e só ternura de palavras entre

os teus cabelos te direi, de encanto.
Minha linguagem rútila terá
a eternidade que terei, cantando.

E tudo o mais será como o silêncio
pesando sobre a noite, a noite e o campo,
e o campo que não mais se esquecerá.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


MELODIAS


Ternas melodias de longínquas plagas,
nas manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.

Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas terras vindes me encontrar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?

Ou vindes dos astros - de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.

Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha;
são as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha

Essas melodias que a minh'alma douram ,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.


Gilberto M. Teles
Im Poemas Reunidos



HINO AO SONO


À noite, quando sinto o meu corpo sentindo
a fadiga, o cansaço e o tédio do trabalho,
tu vens, ó sono bom, vens lentamente vindo
enrolar-me na lã do teu fluido agasalho.

E, como uma flor branca embebida de orvalho,
a suave languidez de tua alma se diluindo
cobre todo o meu ser e no teu ser me espalho
como um som que se escuta a ampliar-se, sumindo...

Em ti, como num mar distante, cujas águas
refletissem a dor , as tristezas e as mágoas
de quem de cedo tivesse o desprezo da sorte,

todo o meu ser se abisma, ansioso, e se evapora!
Porque tu és, ó sono, essa essência sonora
tranquilizante a vida poetizando a morte.


Gilberto M.Teles
In Poemas Reunidos


POEMA


De ti me vem esta alegria pura,
singela como o som de flauta rústica,
irradiante como o sol
na manhã rumorosa,
cheia de orvalhos,
cheia de pássaros,
cheia de luz
e da ansiedade imensa
de completar
o amor!

De ti me vem esta alegria silenciosa
e inexplicável de saber que vivo
na cadência feliz da sintonia
universal dos elementos.
De ti me vem
o sussuro das vozes sonorosas
e a linguagem inefável
deste amor.

De ti me vem esta alegria
de ser livre e de estar sozinho te esperando
nalgumas dessas ilhas afastadas,
perdidas no Pacífico do Sonho.


Gilberto M. Teles
In Poemas Reunidos

CANTIGA I

Não quebres o encanto
da palavra vida.
Deixa que a palavra
role assim perdida
como a própria sombra
dessa coisa-vida.

Deixa que seu canto
se prolongue ainda 
sobre os mil segredos
desta tarde linda,
sobre o mar sereno,
sobre a praia infinda.

Há tanto silêncio,
tanta paz na vida
que nem mesmo o tempo
com sua arte erguida
roubará o encanto
da palavravida.

Deixa que a palavra
ande assim perdida...
-Alguém docemente
pensará na vida.

Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


CANTIGA III


Soprei na esquina do vento
a condição do meu canto:
- "Que os homens todos me entendam!"
Mas, como um rio em silêncio,
fui-me no tempo ocultando.

Era preciso, e falei.
Gritei as minhas palavras.
Tinha esperança, e de lei.
E hoje, cansado, nem sei
se alguém, de longe, escutava.

Surpreendo agora na curva
repentina do planalto
a noite que vem na chuva
de uma tristeza tão muda
que nem sei mais o que faço.


Gilberto M. Teles
In Poemas Reunidos


HINO À NOITE

Ó noite, eu te desejo, e anseio o teu abraço
macio como o luar, quieto como o jazigo.
A fadiga me esvai, domina-me o cansaço,
como um boêmio feliz eu vim dormir contigo.
De sonho em sonho andei.Fui poeta, fui mendigo.
Corri atrás do tempo e me perdi no espaço
e vi se desfazer meu pensamento antigo
e em sangue transformar-se a sombra do meu passo.
Um dia, a procurar-te, olhei para o poente:
na estrada solidão da tarde, impertinente,
um pássaro de sol crepusculava a esmo.
Então eu te encontrei e, em meu triste abandono,
meus olhos disfarcei na volúpia do sono
e caminhei contigo em busca de mim mesmo.

Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos







do livro PLURAL DE NUVENS



LUDUS


Tolle, lege. 
Santo Agostinho

Toma a palavra, e principia. Tudo 
tem um pouco de ti: um sol, um sema. 
No fundo, teu desejo:
............................. lodo e ludo, 
jogo de truque e blefe de poema.

Toma este livro, toma e lê (ou lege);
não só um tomo, a obra inteira soma 
à solidão maior que te protege 
como um corpo de baile no idioma.

E toma ao pé da letra o que combina 
com teu gosto e prazer:
............................. o cimo, a suma 
de todos os sabores,
............................. vitamina, 
quintessência final de coisa alguma.

Gilberto Mendonça Teles
In 'Plural de Nuvens’(1990)


AQUI E AGORA


Procuro o aqui e o agora, 
o agoraqui, o que já foi 
e continua: a cor de outrora 
no couro curtido de um boi.

Procuro o que está sendo, 
o que se acende, o que se apaga,
o acontecido acontecendo, 
sombra de peixe fora d'água.

Procuro o que figura
no que perdi te procurando,
o que se gastou na usura
do que me vem de vez em quando.

Procuro o que projeto 
além de mim, no que me sobra: 
talvez a sombra de um inseto 
na plantação da minha obra.

Procuro o procurar-te, 
o que sempre fiz e não sei. 
Talvez o aqui e o agora, a parte 
do que ficou fora da lei.

Gilberto Mendonça Teles
In ‘Plural de Nuvens’(1990)



PLURAL DE NUVENS


Se há um plural de nuvens e se há sombras
projetadas no texto das cavernas,
por que não mergulhar, tentar nas ondas
a refração dos peixes e das pedras?

Há sempre alguma névoa, um lado obscuro
que atravessa o poema. Há sempre um saldo
de formas laterais, um como escudo
que não resiste muito a teu assalto.

Se alguma luz na contraluz se esbate,
se há no curso dos dias sol e vento,
talvez na foz do rio outra cidade
venha no teu olhar amanhecendo.

Importa é caminhar, colher florzinhas,
somar os ( im ) possíveis e parcelas,
criar no tempo algumas coisas findas,
algumas ilusões e primaveras.

Importa é ler de perto a cavidade
das nuvens e espiar os seus não-ditos:
o mais são armas para o teu combate,
falsos alarmes para os teus sentidos.

Gilberto Mendonça Teles
In Plural das Nuvens


SIGNO

Ainda existe a rosa nos cabelos 
vermelhos da poesia.


Ainda há força 
no azul do seu mistério, no seu canto,
no eixo de sua aérea encruzilhada.


Ainda, a sua origem, seu mais íntimo
silêncio: o veludoso ardor das pétalas,
o aroma das amoras no políndromo,
das palavras de aladas peripécias.


Ainda, esta morada, o seu precioso
espaço interior, o alumbramento
da forma em desatino, a descontínua 
perspectiva do ser na travessia.


Ainda, a sua angústia, o novo tempo
se exaurindo nas coisas, lapidando
os favos da romã e consumindo
seu avesso de fogo e sutilezas.


E ainda a sua imagem:
lago, espelho,
alma e corpo submerso, o indelével
estribilho do amor e seu disfarce,
e seus pontos de cruz na superfície.


Gilberto Mendonça Teles
In Plural de Nuvens















CANTIGA



Se vives dentro da noite
como uma estrela , a brilhar,
eu vou pela noite a dentro
no meu silêncio, a sonhar.

(Alguém haverá que impeça
um sonhador de sonhar?
E essas palavras comuns,
não são também para usar?)

Estendo as mãos: a distância
se interpõe.Fico a pensar:
por que as estrelas são tantas?
Por que não posso voar?

Gilberto Mendonça Teles
In 'Poemas'


CHUVA



Era uma chuva tão pura
mas tão triste e fina e fria.
Era uma cinza de inverno,
fumaça de água,
fatia
ou faca de aço nas árvores,
chagando a terra macia,
pondo lodo nos caminhos,
angústia no que se via.
Tristeza brava,
de chumbo,
cavalo azul que mordia
a tarde,
o campo,
a distância
nos pastos da ventania.
Seu rato mole,
de sombra,
sulcava o tempo,
dormia
nos pêlos úmidos, cheios
da vida que se escondia
sob o silêncio das pedras,
das raízes, do que havia
longe dos olhos dos homens,
longe dos olhos do dia.


Gilberto Mendonça Teles
In: "Pássaro de Pedra"

DO LIVRO & CONE DE SOMBRAS


TEORIA

1

Minha paixão teórica
é muito mais que paixão;
não está longe nem próxima,
está no ar e no chão.

Tem seu real, mas é órfica
como o sim, como o não;
sua antena parabólica
capta só distração.

Nunca exibe o seu código
livre na palma da mão,
embora sempre erótica
no seu tempo e viração.

Minha paixão teórica
segue o exemplo da inflação:
sobe e desce sem órbita,
é mais que bala – é balão.


Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras


2


Deixe que venha o poema
como um telefonema.

Deixe que o poema venha,
mas ponha fogo e lenha.

Que o poema venha, deixe,
mas com molho no peixe.

De lenha e telefonema,
de peixe e algum dendê,
pode-se ter um poema,
dependendo de você,

que é capaz de ver anjo
voando de mini-saia,
sem se dar conta do arranjo
ou do rabo-de-arraia.


Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras


3


Eu não sei se sou leigo ou laico,
sei que este poema é prosaico.
E sei que em matéria de poema
melhor é não criar problema.

Cada um escreve o que pode:
este aqui tem barba e bigode
e pode até não ter cabelo,
mas não é preciso dizê-lo.

O leitor, que hoje está na moda,
é que deve fazer a poda
e colher o que mais lhe agrade,
mesmo que seja tempestade.

Mas se eu não for laico, for leigo?
E se o meu poema for meigo?
Como é que fica o meu conceito,
se ainda não matei o sujeito?

E acho mesmo que além de tudo
um poema, mesmo sisudo,
pode até ser (tecer faz mal?)
um poema sentimental.

Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras



ENTREMÊS


Poe trás da sombra, a cortina:
por trás, seu palco de susto:
ensaia-se uma obra prima
nas cenas das contraluz.

Pula no centro um fonema,
faz piruletras e ponto.
(No camarim uma pena
procura imitar o tom.)

Cada vogal com seu luxo
de cores e metaplasmos
se enrola num caramujo
para os disfarces nasais.

A seguir as consoantes,
marcando o ritmo de um órgão
se curvam fazendo grandes
acrobacias no chão.

No bastidor as palavras
treinam seus malabarismos:
pernas pretas pernas alvas
jogo de amor nos quadris.

E logo, formando fila,
saltam rindo para o palco,
dançando rock, quadrilha,
puxando seu carnaval,

formando grupos, figuras,
coreografias de gestos,
mil movimentos de agulhas
e de novelos nos pés.

E fazem tudo tão simples,
com a tal perícia e tal arte
que só se escutam os timbres
de seu prazer de cantar.

Depois, em forma de reza,
entre palmas e mãos postas,
alguém prega alguma peça
na ponta deste retrós.

Nas cenas da contraluz,
ensaia-se uma obra-prima;
por trás das sombras, o susto;
por trás do susto, a cortina.


Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras



CANÇÃO

Aquém da fala
a voz resvala
na escuridão:
quer ser figura,
torna-se pura,
ser a canção,
o vento, a praia,
nuvem, cambraia
no céu, no chão,

Mas o que excita
a forma escrita
na minha mão,
o que foi lido
ou pressentido
no sim, no não,
ainda resvala
além da fala
na escuridão.

Gilberto Mendonça Teles
in & Cone de Sombras


CRÍTICA


seu livro tem altos & baixos


os altos ideais & os baixos princípios
as altas qualidades & os baixos instintos
a alta fidelidade & o baixo meretrício
a alta freqüência & o baixo contínuo
o alto da cópula & o baixo da cúpula
o alto cargo & o baixo calão
o alto da boa vista & o baixo leblon
o ponto mais alto & o mais baixo relevo
o alto falante & o baixo falido
o que anda alto & o que pisa baixo
o alto poder de & o baixo costume de

seu livro tem altos & baixos

embora o tenha lido muito por alto
& em baixo astral



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



A Pedra


No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?

Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?

No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.

No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala, 
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.

No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras


VEIA POÉTICA


às três horas da manhã
de uma quarta-feira de cinzas
o poeta olhou mais uma vez
a árvore dourada da existência
fechou o livro de teoria
abriu as veias
e começou a escrever em silêncio
o seu poema definitivo



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



DOCUMENTO


Pego um selo qualquer, uma estampilha
dessas de educação de antigamente,
e dou ao texto um cunho de vigília,
de estado de leitura permanente.

Mas falta-lhe um relógio de ambiente,
falta um jogo de escrita ou de mobília;
e o que se conta nunca está de frente,
tem sempre um jeito oblíquo, de armadilha.

Fosse um papel sem lado, e o meu papel
talvez se sustentasse no apelido,
nalgum nome que se abre como um delta,

como uma linha-d’água, um claro-escuro,
um sinal para ser reconhecido
sem timbre e protocolo, no futuro. 



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



PASSATEMPO


Como num jogo, sem barulho,
escolhemos a parceria,
tomamos nossos lugares
e nos dispusemos à sorte das cartas.

Houve tímidas apostas.
Compramos, descartamos,
discutimos as regras,
mas tudo pelo simples
prazer do passatempo.

Se houve boas jogadas
e algum blefes
(trapaças, talvez),
ainda é cedo para saber.

O certo é que fizemos
21 pontos nesta rodada.
A mesa ainda está disposta
e o jogo continua.

Quem está ganhando/perdendo?
E o baralho agora de quem é?


PS

E este punhal de prata enfincando de longe
bem no centro da mesa?



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



INVEROSSÍMIL


Mais justo é resistir às conveniências
dos sábados, fechar as mãos no fundo
dos bolsos, pôr os olhos o mais baixo
possível,
rastejar,
lamber o chão
e reduzir as margens do real
à lógica do absurdo.

Há sempre alguém envernizando a linha
dura de teu discurso. Há sempre alguém
tentando surpreender a forma aérea
de teu gesto no instante em que modulas
por dentro o teu vazio.

Melhor é resistir: além dos sábados
a vida continua, e seus disfarces.



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras




SUBVERSÃO


Nos compêndios de história
desfilam apenas os blocos
de reis, imperadores e generais
que não acabam nunca mais.


Foram sempre justos, belos e bons
e além de tudo geniais:
escreveram seus livros de linhagem
e as nobiliarquias tradicionais.


Para garantir seus direitos divinos
(e seus interesses patrimoniais),
criaram as leis, os documentos e até os cargos
de historiadores oficiais.


Nos compêndios de história
não há povo, falta o carnaval das gerais.
Somente existe a multidão
de reis, imperadores e generais. 



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras





SÁFICA

A Junito Brandão


Sou aquele que te escutou e te viu,
para ciúmes de Safo cuja voz
tinha a forma triste de uma alma talvez
trêmula demais.


Sou igual aos deuses, maior até: sou
quem te lê nas dobras da língua, no som
deste carme feito para Lésbia, ao sol
deste amor tão só.


Sou também aquele que pôs nos braços
de Lídia o mais vívido amor, aquele
que esqueceu a túnica belicosa
no auge da paixão.


E sou agora o signo desse cisne
cuja plumagem lírica sustenta
a vastidão do tempo.
Queira Apolo 
dourar meu canto para além de mim.




Gilberto Mendonça Teles



C’ANTIGA


Na corte d’amor eu sofro, coitado.
Pecador eu fui por não ter fisgado
a maior paixão.


Por não ter cruzado a linha d’ambíguo
na corte d’amor não fiquei contíguo
à maior paixão.


Na corte d’amor, no meu coito achado,
trovador eu fui mas sem ter provado
a maior paixão.


Por não ter cruzado a linha d’embigo,
na corte d’amor não sofri contigo
a maior paixão. 




Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



TRAGÉDIA DA PIEDADE


namorou-lhe a mulher
assassinou-o
matou-lhe o filho
contraiu núpcias
com a viúva 
e com os direitos
autorais
e alguns galões
abandonou a mulher
e se perdeu nos sertões.



Gilberto Mendonça Teles


HOMOLOGIA


Depois que Cabral atravessou
a montanha de mares nunca dantes
e foi, próspero, educando
as pedras e equinócios dos Andes,


os sete mil e quinhentos quilômetros de
foram logo substituídos
pelo sete mil e quinhentos quilômetros
de montanhas, índios e vulcões.


Depois que Cabral descobriu
o maritimontanhoso das palavras mais
e foi, prospero, reeducando
o verso decassílabo das pedras,


os cinqüenta milhões de poetas do
foram logo substituídos
por outros cinqüenta milhões 
de montanhas, índios e vulcões. 



Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



CENTÃO SIMBOLISTA


cítaras, harpas, bandolins, violinos,
mórbidos, quentes, finos, penetrantes,
carinhos, beijos, lágrimas, desvelos,
desejos, vibrações, ânsias, alentos.


mares, estrelas, tardes, natureza,
inefáveis, edênicos, aéreos,
sinistras, cabalísticas, noturnas,
esferas, gerações sonhando, passam!


sombra, segredo, lágrima, harmonia, 
pálida, bela, escultural, clorótica,
atra, sinistra, gélida, tremenda,


alvo, sereno, límpido, direito,
amplo, inflamado, mágico, fecundo,
ondula, ondeia, curioso e belo.


Gilberto Mendonça Teles
In: & Cone de Sombras



Modernismo



No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.


Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.


Um sujeito que nesta reta de chegada dos cinqüenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.


Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.


Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século


e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.


Gilberto Mendonça Teles
(&cone de sombras, 1986,p.153.)