Seja bem-vindo. Hoje é

domingo, 31 de janeiro de 2010

Saudade



Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença, em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.

Augusto dos Anjos

PRIMAVERA



Primavera gentil dos meus amores,
- Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!


Augusto dos Anjos
(Paraíba- 1884-1914)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

DISCURSO



nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de idéias
flocos de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração.


Afonso Henriques Neto
In Ser Infinitas Palavras (Poemas Escolhidos e Versos Inéditos)
Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2001

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010



Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar.
A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: Achei! Achei!
Mas ele escorrega se espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça.
A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último, mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas.
E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano.
Um dia a gente chega à frente do espelho e descobre: Envelheci!
Então a busca termina. As perguntas colam no fundo da garganta, e vem a morte.
Que talvez seja a grande resposta.
A única.


Caio Fernando de Abreu
em Limite Branco

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Apesar do teu fundo olhar agonizante...



Apesar do teu fundo olhar agonizante,
E dos esgares dos teus últimos arrancos,
E das rugas que tens sobre o morto semblante,
Alma coroada de hibernais cabelos brancos:

Apesar, e talvez por causa disso, diante
De ti houve alguém pasmo, a contemplar-te os flancos
Estrelados, e o manto às virações flutuantes,
E todo esse pavor dos teus olhos estancos...

Mirou-se de alto a baixo, e teve, como tantos,
Um olhar de piedade imortal que te esconde
Em ritmos (até hoje) incessantes de prantos.

Compreendeu-se talvez, pobre alma de remansos
Quietos e tristes, lago imenso que se expande
Para além, para além, cheio de cisnes mansos...


Alphonsus de Guimaraens
in “Poesia Completa” de Alphonsus de Guimaraens,
Editora Nova Aguiar

Tema secular



As velhas ilusões são como um bando
de cisnes a vogar em manso lago:
Seguem suaves, silentes; vão sonhando,
ao condão misterioso de um rei mago...

A tarde é um lírio roxo: o ocaso é brando,
e morre à beira-céu, com o um afago;
a lua, errante arcanjo miserando,
ergue-se então com o seu palor pressago...

Há sombras pelos bosques enluarados,
e nos torreóes do céu vultos humanos
envolvem-se em grinaldas de noivados...

Vêm dias, e vêm meses, e vêm anos:
E os cisnes, em casais de bem casados,
seguem singrando o lago dos enganos...


Alphonsus de Guimaraens
in “Poesia Completa” de Alphonsus de Guimaraens,
Editora Nova Aguia

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

EM TOM DE BRANCO



Branco,
não nos sabemos.
Limitamo-nos espaço
a ser –
- e morremos.

Branco, imaginasse a tua cruz:
uma campa, um sino,
a casa
- aquela casa –
Tudo o mais ainda somos
e não passamos
- somos –
e não morremos.

Ah luz, ah imenso branco,
esta tela, esta angústia,
este ser
- é branco?

A cor não existe.
Somos o que inventamos.
Passamos.
Mas o nada insiste.


Lúcio Cardoso
in Poemas Inéditos
(Minas Gerais- 1913-1968)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

LUA CHEIA



Quando o céu todo se enfeita.
Para uma paz satisfeita
E o mundo inteiro se deita
Nos braços da escuridão,
Aparece a lua cheia,
A fulgurante candeia
Que pelo espaço vagueia,
Clareando a imensidão!


Sutil e cariciosa,
Dentro da nuvem garbosa,
Ela se eleva ditosa,
Num soberbo alumbramento!
É o espelho da beleza,
Refletindo a natureza,
No seu trono de princesa
Do salão do firmamento!


O céu – lindos alabastros!
Vive marcado de rastros
Da enamorada dos astros
E poetisa do azul!
Quando ela passa sombria,
Distribuindo alegria
E recitando poesia
Para o Cruzeiro do Sul!


E na sua claridade
Que há tanta serenidade,
Existe a sublimidade
Da transparência de um véu...
A lua que algo retrata,
Jogando luz sobre a mata,
Parece um olho de prata
No rosto imenso do céu!


Jansen Filho
In: Obras Completas

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

NOTURNO



Com seus dedos invisíveis
balança o vento a cortina,
muito leve, levemente,
tal farrapo de neblina.

A luz argêntea da lua
parece uma asa de vespa
tremulando suavemente
sobre um lago de água crespa.

Pela vidraça entreaberta,
iludindo que entra alguém,
entra o vento, sai o vento,
num noturno de Chopin.

E os teus dedos, no teclado
de marfim envelhecido,
são dez pássaros pousados
num trigal reflorecido.

De repente o vento cessa.
Uma nuvem tolda o luar.
Desce em pregas a cortina

e fica à música no ar...


Alfredo Cumplido de Santana
In Poemas e Legendas

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

'TEMPO IMEDIATO'



O Tempo é tema
ingrato, teclas de sono
sobre células ávidas:

Tapete perene
sob meus pés de sonho.

O Tempo cobre
de penas e alegrias
minhas tantas noites:

Confere novas cores
a meus dias di-versos.

O Tempo sofre
aparas, afere augúrios,
distribui o terror inédito:

Insólito e voraz,
ele cobra meus anos.

O Tempo enorme,
às vezes cálido e audaz,
abriga amor e medo:

Descobre self, sonhos
e faces que aflito exponho.

Jairo De Britto,
In Dunas de Marfim

TARDE



Há uma leve tristeza nesta tarde
que a visão do mar acaricia:
um dia mais que morre sem alarde
e ascende a esperança de outro dia.

As estrelas acordam docemente
num ritual antigo e conformado,
na tarde vem a mágoa persistente,
herdada de outras tardes do passado.

Choro de criança, gritos e risadas,
uma tristeza sem dor, sem consistência
- minha infância sorri pelas calçadas -.

Brisas, leves sons de violino,
no céu a noite toma consciência
e desce à terra pela mão dos sinos.


Yttérbio Homem de Siqueira
Abismo Intacto.
(R.G. do Norte -1932-1981)

domingo, 31 de janeiro de 2010

Saudade



Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença, em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.

Augusto dos Anjos

PRIMAVERA



Primavera gentil dos meus amores,
- Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!


Augusto dos Anjos
(Paraíba- 1884-1914)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

DISCURSO



nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de idéias
flocos de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração.


Afonso Henriques Neto
In Ser Infinitas Palavras (Poemas Escolhidos e Versos Inéditos)
Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2001

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010



Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar.
A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: Achei! Achei!
Mas ele escorrega se espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça.
A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último, mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas.
E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano.
Um dia a gente chega à frente do espelho e descobre: Envelheci!
Então a busca termina. As perguntas colam no fundo da garganta, e vem a morte.
Que talvez seja a grande resposta.
A única.


Caio Fernando de Abreu
em Limite Branco

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Apesar do teu fundo olhar agonizante...



Apesar do teu fundo olhar agonizante,
E dos esgares dos teus últimos arrancos,
E das rugas que tens sobre o morto semblante,
Alma coroada de hibernais cabelos brancos:

Apesar, e talvez por causa disso, diante
De ti houve alguém pasmo, a contemplar-te os flancos
Estrelados, e o manto às virações flutuantes,
E todo esse pavor dos teus olhos estancos...

Mirou-se de alto a baixo, e teve, como tantos,
Um olhar de piedade imortal que te esconde
Em ritmos (até hoje) incessantes de prantos.

Compreendeu-se talvez, pobre alma de remansos
Quietos e tristes, lago imenso que se expande
Para além, para além, cheio de cisnes mansos...


Alphonsus de Guimaraens
in “Poesia Completa” de Alphonsus de Guimaraens,
Editora Nova Aguiar

Tema secular



As velhas ilusões são como um bando
de cisnes a vogar em manso lago:
Seguem suaves, silentes; vão sonhando,
ao condão misterioso de um rei mago...

A tarde é um lírio roxo: o ocaso é brando,
e morre à beira-céu, com o um afago;
a lua, errante arcanjo miserando,
ergue-se então com o seu palor pressago...

Há sombras pelos bosques enluarados,
e nos torreóes do céu vultos humanos
envolvem-se em grinaldas de noivados...

Vêm dias, e vêm meses, e vêm anos:
E os cisnes, em casais de bem casados,
seguem singrando o lago dos enganos...


Alphonsus de Guimaraens
in “Poesia Completa” de Alphonsus de Guimaraens,
Editora Nova Aguia

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

EM TOM DE BRANCO



Branco,
não nos sabemos.
Limitamo-nos espaço
a ser –
- e morremos.

Branco, imaginasse a tua cruz:
uma campa, um sino,
a casa
- aquela casa –
Tudo o mais ainda somos
e não passamos
- somos –
e não morremos.

Ah luz, ah imenso branco,
esta tela, esta angústia,
este ser
- é branco?

A cor não existe.
Somos o que inventamos.
Passamos.
Mas o nada insiste.


Lúcio Cardoso
in Poemas Inéditos
(Minas Gerais- 1913-1968)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

LUA CHEIA



Quando o céu todo se enfeita.
Para uma paz satisfeita
E o mundo inteiro se deita
Nos braços da escuridão,
Aparece a lua cheia,
A fulgurante candeia
Que pelo espaço vagueia,
Clareando a imensidão!


Sutil e cariciosa,
Dentro da nuvem garbosa,
Ela se eleva ditosa,
Num soberbo alumbramento!
É o espelho da beleza,
Refletindo a natureza,
No seu trono de princesa
Do salão do firmamento!


O céu – lindos alabastros!
Vive marcado de rastros
Da enamorada dos astros
E poetisa do azul!
Quando ela passa sombria,
Distribuindo alegria
E recitando poesia
Para o Cruzeiro do Sul!


E na sua claridade
Que há tanta serenidade,
Existe a sublimidade
Da transparência de um véu...
A lua que algo retrata,
Jogando luz sobre a mata,
Parece um olho de prata
No rosto imenso do céu!


Jansen Filho
In: Obras Completas

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

NOTURNO



Com seus dedos invisíveis
balança o vento a cortina,
muito leve, levemente,
tal farrapo de neblina.

A luz argêntea da lua
parece uma asa de vespa
tremulando suavemente
sobre um lago de água crespa.

Pela vidraça entreaberta,
iludindo que entra alguém,
entra o vento, sai o vento,
num noturno de Chopin.

E os teus dedos, no teclado
de marfim envelhecido,
são dez pássaros pousados
num trigal reflorecido.

De repente o vento cessa.
Uma nuvem tolda o luar.
Desce em pregas a cortina

e fica à música no ar...


Alfredo Cumplido de Santana
In Poemas e Legendas

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

'TEMPO IMEDIATO'



O Tempo é tema
ingrato, teclas de sono
sobre células ávidas:

Tapete perene
sob meus pés de sonho.

O Tempo cobre
de penas e alegrias
minhas tantas noites:

Confere novas cores
a meus dias di-versos.

O Tempo sofre
aparas, afere augúrios,
distribui o terror inédito:

Insólito e voraz,
ele cobra meus anos.

O Tempo enorme,
às vezes cálido e audaz,
abriga amor e medo:

Descobre self, sonhos
e faces que aflito exponho.

Jairo De Britto,
In Dunas de Marfim

TARDE



Há uma leve tristeza nesta tarde
que a visão do mar acaricia:
um dia mais que morre sem alarde
e ascende a esperança de outro dia.

As estrelas acordam docemente
num ritual antigo e conformado,
na tarde vem a mágoa persistente,
herdada de outras tardes do passado.

Choro de criança, gritos e risadas,
uma tristeza sem dor, sem consistência
- minha infância sorri pelas calçadas -.

Brisas, leves sons de violino,
no céu a noite toma consciência
e desce à terra pela mão dos sinos.


Yttérbio Homem de Siqueira
Abismo Intacto.
(R.G. do Norte -1932-1981)